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quarta-feira, 13 de novembro de 2024

O pecado da ira e os irados

Ira, um dos sete pecados capitais, significa raiva, ódio ou rancor em nível supersônico. Tem origem na contrariedade ou sofrimento físico ou moral sofrido e é muito mais comum do que se imagina. A pessoa irada quer vingar a agressão, por vezes de modo violento e desproporcional. Quantos morreram porque olharam enviesado para alguém, para a namorada alheia, porque vestiam camisa de um time de futebol, por causa do trânsito ou divergência política?

No passado, assassinos confessos, com caríssimos advogados, foram absolvidos ou receberam penas leves por crimes passionais ou contra a honra. Os Jurados entendiam que certas ofensas matam moralmente a vítima. Honra se lava com sangue, diziam, mas essa tese não cola mais. Porém, zoados, cônjuges traídos ou sócios passados para trás podem ser consumidos pela ira.

O caso de Samira e Guarabira é um exemplo. O casamento deles foi arranjado por um pai que queria um belo dote para o filho nó cego, mais do que uma esposa, e outro que queria um pai para o neto. Ambos contaram vantagens durante a negociação das bodas, mas o patrão do noivo foi quem financiou a festa meia boca na pizzaria. Ambos falidos, o dote micou e Guarabira começou a vida de casado com dívidas.

Esse foi o menor dos problemas. Na festa, o pai da noiva deu em cima da tia do noivo e o marido dela, chapado, foi pego dançando com a amante no trocador de fraldas, com o rosto colado, sem música e sem roupas. Parentes de ambos os lados se pegaram, no rala e rola e na porrada. Maior baixaria! Os noivos foram para casa e alguns convidados para a Delegacia. Sobrou até para o patrão do noivo: levaram sua esposa, seu carro e sua carteira.

Samira e Guarabira, nomes terminados em “ira”, conheceram-se um mês antes do casamento. Na manhã seguinte à festa, acordaram com forte mal cheiro. É que ele tem chulé irado e ela mal hálito matinal que nem um copo de enxaguante resolve. Quando um usa o banheiro, é preciso abrir a porta e a janela, acender vela, despejar desinfetante e aguardar 15 minutos para o outro poder usar. Ô povo podre! É nisso que dá casar sem fazer test drive.

Dizem que o humano se acostuma com o cheiro, mas os problemas não pararam aí. Samira, com Q. I. igual a gambá anêmico, omitiu que carrega DNA alheio no ventre e culpou o marido, que nunca perguntou. Guarabira é ingênuo. Deixou o seminário há três meses, nunca conheceu mulher e só soube da gravidez quando a família comemorou. Samira garantiu que o filho é dele. Explicou que mesmo sem terem relação sexual, eles usam a mesma toalha. Ele acreditou!

Guarabira recorreu à mais famosa rede de aconselhamento psicológico: o bar. Garçom e clientes explicaram certas coisas e ele, irado, queria cancelar o CPF de Samira, mas o espírito religioso prevaleceu. O casal procurou ajuda profissional e a conselheira garantiu que relacionamentos abertos podem funcionar. Eles tentaram, mas a criança nasceu e nem foi preciso exame de DNA: é a cara do Abreu, primo em segundo grau e grande safado, que não saí da casa deles.

Samira prometeu não mais ver o primo e jurou que ia se comportar. Não adiantou. Quatro anos mais velha, sem dote e fraca de feição, ela engordou, criou estrias, celulite, os peitos caíram e continuou a se encontrar na moita com o safado Abreu, que nunca comprou uma fralda sequer.

Obrigado a dormir no sofá para não estressar o bebê, ele esqueceu o celular na sala e a falsa samaritana irou-se ao nível máximo após ver mensagens e fotos de uma tal Eva. A vadia é loira, corpo bem torneado, bonita e uns 8 anos mais jovem. A vingança haveria de ser maligna.

Após dura discussão, o casamento chegou ao fim e Guarabira foi morar num bairro distante. Saí cedo para o trabalho e volta à noite, sempre desconfiado, atento a tudo e a todos, com o 38 ao alcance da mão. Nos fins de semana, vai ao cabaré ver Eva dançar, fica até o fim do show e volta para casa com a moça. Samira acertou-se com o safado Abreu e tudo parecia caminhar bem, até o destino fazer os casais se cruzarem num ponto de ônibus junto a um beco escuro. 

A ira reacendeu com tudo. Ao ver Guanabira com a piriguete e Samira com o safado Abreu, a reação deles foi tão rápida quanto uma diarreia de madrugada, sem tempo para pensar ou acender a luz. Ouviram-se dois disparos, seguidos do baque dos corpos desabando. Dois tiros certeiros, ou melhor, nada certeiros. Guarabira e Samira têm péssima pontaria, erraram os alvos e acertaram Abreu, o safado, e Eva Dias, a piriguete, bem no meio das testas.

Após segundos de pânico, as horas assistindo episódios de CSI inspiraram o casal. Eles limparam as digitais das armas e colocaram nas mãos dos presuntos. Ligaram do orelhão para o Disque Denúncia e foram embora. Por conveniência, voltaram a morar juntos, ela no quarto, ele na sala. Mal se falam, comem fora e um não toma o café que o outro prepara. A ira não se acaba de vez e sempre retorna. O seguro morreu de velho. Vai saber o que um pode colocar no café do outro! Vida que segue. Irada.

Laerte Temple
Laerte Temple
Administrador, advogado, mestre, doutor, professor universitário aposentado. Autor de Humor na Quarentena (Kindle) e Todos a Bordo (Kindle)

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