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quarta-feira, 13 de novembro de 2024

Assoberbado

A língua portuguesa é curiosa. Dependendo do contexto, uma palavra pode significar coisa boa ou coisa ruim. Não é incrível? Por exemplo, ASSOBERBADO, segundo o dicionário, significa atarefado, alguém com excesso de trabalho, mas também quer dizer pessoa arrogante, com pretensão de superioridade. Se alguém diz que anda assoberbado, está com excesso de trabalho ou é arrogante?

Para os católicos, os sete Pecados Capitais são erros ou vícios que originam atos pecaminosos, más ações ou maus pensamentos, e o primeiro pecado da lista é justamente a SOBERBA, o orgulho excessivo, raiz de todos os demais pecados, o oposto de Humildade.

Algumas pessoas parecem nascer predestinadas a determinados fins. Um exemplo é Magnus Maximus Belo, que fisicamente não é nada disso, cujos pais fizeram o possível e o impossível para que o rebento fosse superior a todos, em tudo. Desde criança foi orientado a se promover e superar os concorrentes em qualquer atividade. Ser sempre o primeiro causava-lhe alguns problemas, por exemplo, quando furava a fila da vacinação. Era o primeiro a levar a picada.

O mesmo se pode dizer de Linda das Graças Fortuna, a “Grace”, desprovida de beleza, graça e fortuna, mas de linhagem nobre, ou pelo menos assim seus pais faziam crer. Seu perfil na rede social diz ter nascido em terras da família, na Fazenda Ótima Vista (Boa Vista é coisa de plebeu) e ser descendente de nobres da Corte de Lusa. Na realidade, o bisavô era capataz da fazenda e se apossou das terras quando os donos morreram em circunstâncias suspeitas e a bisavó, a rapariga Duda Nobre, era costureira na oficina Corte Lusa.

Magnus parece vestir calças pedestal, tal é a imponência com que se apresenta, em roupa engomada e cabelo com muita Brilhantina. Parece busto sobre pedestal, desses que a gente vê em praça pública. O povo diz que arrota peru, mas come mortadela da promoção; aprecia música clássica, mas confunde Brahms e Chopin com Brahma Chope.

Grace e Magnus foram ao evento para arrecadar fundos para a Casa de Saúde Academia, de uma advogada e influenciadora não se sabe do quê. Eles imaginaram tratar-se de boca livre nos fundos de uma Academia, pois casa de saúde só pode ser um ambiente com pessoas saudáveis e não um local repleto de doentes. No centro do amplo salão havia uma enorme fruteira de prata, com lindas maçãs e um cartaz com os dizeres: Favor não pegar antes de ser autorizado.

Grace e Magnus chegaram cedo e, sem coisa melhor para fazer, esnobavam arrogância e falavam sobre viagens exóticas que nunca fizeram, propriedades que não possuem etc. Mas tudo com muita classe e harmonia. Evitaram contato com gente sem pedigree.

Bateu a fome e resolveram comer uma maçã. Afinal, são nobres e não é um cartaz que vai definir o que podem ou não fazer. O gosto era ruim, mas a fome falou mais alto. Os convidados começaram a chegar: influenciadores, coachs, políticos, assessores, pseudocelebridades e novos ricos esnobes em busca de visibilidade. O bufê serviu canapés veganos, coquetéis sem álcool, sucos naturais e almôndegas de soja. Puro gosto de isopor, sem açúcar e sem sal.

  • Vou confessar uma coisa. Gosto mesmo é de caipirinha – disse Magnus.
  • E eu de um suculento bife – confidenciou Grace.

Magnus pediu ao maitre para providenciar caipirinha com cachaça Anisio Santiago e um bife de Ancho, mas de gado Wagyu. Dez minutos depois, um garçom trouxe os pedidos.

  • É gado Wagyu?
  • O gado mugiu, sim senhor.
  • A caipirinha é Anisio Santiago?
  • Sim. Foi o seu Tiago que fez.

No instante em que iam saborear, a influenciadora pediu para cada convidado pegar uma maçã da fruteira e abri-la girando metade para cada lado. Dentro da falsa fruta há uma medalha gravada com o valor a ser doado e a chave do PIX. As maçãs são de cera e não devem ser comidas. Magnus e Grace passaram mal e pediram para pararem o que não estavam fazendo e levá-los ao Sírio Libanês. Sem dinheiro e sem convênio, o maitre os levou de taxi ao SUS. 

A lavagem intestinal revelou uma medalha em cada um: ele deve R$ 50 mil e ela R$ 40 mil, e ainda ficaram sem as maçãs de brinde, caipirinha e bife. Liberados no dia seguinte, o café da manhã foi Baião de Dois com Cajuína, no restaurante do maitre, o Recanto Nordestino. Pela TV, viram a prisão da influenciadora, que embolsou a grana das doações dos ricaços manés. Todos os demais convidados eram apenas soberbos e ostentadores, que nada pagaram. A tal Casa de Saúde não existe.

O mundo está infestado de gente soberba e ostentadores sem classe, disse Magnus à amiga falida. Ele agradeceu o maitre, mas teve de pagar a corrida do taxi e o café da manhã. Como tanta gente assoberbada, ninguém mais é bonzinho de graça. Vida que segue!

Laerte Temple
Laerte Temple
Administrador, advogado, mestre, doutor, professor universitário aposentado. Autor de Humor na Quarentena (Kindle) e Todos a Bordo (Kindle)

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