O Que Immanuel Kant Entendia Por Menoridade? Como Foi Desenvolvido o Projeto Enciclopedista?
Para o filósofo Immanuel Kant, seguindo os conceitos de autonomia e independência do indivíduo, “o esclarecimento é a saída do homem da sua menoridade de que ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de se servir do entendimento sem a orientação de outrem. Tal menoridade é por culpa própria se a sua causa não reside na falta de entendimento, mas na falta de decisão e de coragem em se servir de si mesmo sem a orientação de outrem. Sapere aude! ([1]). Tem a coragem de te servires do teu próprio entendimento! Eis a palavra de ordem do Iluminismo. ” (KANT, 1992, pág.11).
A expressão usada por Kant (“Sapere Aude”) significava a possibilidade de criação de um processo de construção do conhecimento, dotado da capacidade renovadora, e que permitiria, inclusive, a revisão de seus próprios fundamentos. A sua proposta estava voltada para a crítica do próprio saber, de forma a se alcançar a independência intelectual, e dirigia-se a todos, intelectuais ou não.
O movimento Iluminista exerceu forte influência sobre as ciências, artes, literatura e as doutrinas política e jurídica, tendo como pano de fundo a filosofia crítica, voltada contra a ordem social e política. Representado por um conjunto de ideias que abarcou diferentes correntes de pensamento, nem sempre formando um todo uno e coeso, apresentou variáveis e particularidades que marcaram diversas formas de expressão em muitos países da Europa e ajudou a definir os contornos do mundo ocidental contemporâneo ao moldar as instituições e os ideais, que nos servem de parâmetros até hoje.
Apesar da diversidade, o Iluminismo apresentou traços peculiares e simultâneos marcados pela ideia de crítica e de “progresso” espiritual e intelectual. Contudo, se desconhece qual o sentido e a amplitude do termo progresso, na medida em que não nos fica claro se possui um aspecto quantitativo, e também qualitativo, se representa uma “ampliação do saber” ou um “progressus in indefinitum” ([2]). Em oposição à ideia de obscurantismo e ignorância, a metáfora da luz que clareia as mentes humanas traz a necessidade de se enxergar o real a partir da razão. As possibilidades do conhecimento se estabelecem com a razão, fator preponderante para desvendar a realidade social e política.
Sendo assim, o papel da consciência e da autonomia do indivíduo diante do processo de conhecimento e do real são fundamentais, pois todo ser humano é dotado de razão. Dessa forma, a todos é permitido acessar o conhecimento, desde que guiados pelos preceitos da própria racionalidade. Evidencia-se, assim, o projeto iluminista de promoção do indivíduo, de desenvolvimento e formação do sujeito, com base na autonomia e liberdade. Nesse sentido, o Iluminismo apresenta-se como um projeto ético-pedagógico de cunho emancipatório, que intenta o progresso racional humano. Contudo, o sentido do conceito razão utilizado pelos iluministas é bem diverso daquele inaugurado por Descartes. Para aqueles, deveria ser possível também abrir caminho para a experiência e para os sentimentos.
Para desenvolver e colocar em prática esse projeto é preciso, inicialmente, reconhecer quais são os obstáculos para o pleno conhecimento racional. Para os iluministas estes obstáculos são representados por todas as forças que impedem que o ser humano adquira sua própria autonomia, como esclarecia Kant. Por sua vez, essas forças são reconhecidas em toda autoridade que submeta a si mesma a própria razão humana e que, consequentemente, pretenda tutelar os indivíduos. Um dos expoentes do Iluminismo, Voltaire, criticou severamente a Igreja e defendeu o pensamento absolutamente laico, já que apontava a religião como um dos obstáculos para “independência” do indivíduo.
Com o intuito de promover a emancipação dos indivíduos e afastá-los do poder exercido por autoridades que os subjugava, foi desenvolvido o projeto enciclopedista, que pretendeu sintetizar o conhecimento humano produzido, numa tentativa de popularizar o conteúdo do pensamento moderno. A Enciclopédia serviu aos propósitos emancipatório e pedagógico que marcaram o Iluminismo e foi publicada a partir de 1751, sob a orientação de Diderot.
O projeto enciclopedista teve como temática questões científicas, técnicas, artísticas e filosóficas e, com uma pretensão de tornar as descobertas humanas mais acessíveis, idealizou uma sociedade em que, sustentada pelo conhecimento, pudesse ser mais livre e igualitária. Promoveu uma intensa crítica à Igreja e ao Estado Monárquico, que influenciou os ideais da Revolução Francesa diretamente. Visou a transformação social e, para isso, estabeleceu-se sobre um projeto educacional, que intentava libertar o ser humano das amarras de todo tipo de poder autoritário.
O Iluminismo, marcado pelo pensamento crítico e autocrítico, remonta ao século XVII e encontra o seu ápice histórico na Revolução Francesa de 1789, na Declaração dos Direitos do Homem e na promulgação da Constituição do Estado Unidos da América. Estes eventos criticavam a forma de governo vigente, o Absolutismo Monárquico, e estavam calcados na doutrina jusnaturalista, que concebia os direitos como inerentes à própria natureza sendo, portanto, invariáveis e imutáveis, como já visto. Assim, o abuso de poder e a tirania eram contrapostos pela noção de que os seres humanos eram sujeitos de direitos, naturais. Não era possível reconhecer como legítima qualquer situação ou ordem que suprimisse os direitos naturais dos indivíduos, contudo, se ocorressem desmandos e abusos, o povo tinha o direito de se rebelar e de depor o governo. O pensamento filosófico era o guardião destes direitos.
Se o Iluminismo se estabeleceu no campo teórico, a Revolução Francesa, como uma de suas formas de expressão histórica, representou a concretização dos ideais filosóficos do esclarecimento, o estabelecimento do espírito dotado de autoconhecimento de sua própria época e crítico, elementos determinantes na conquista de valores e concepções utilizados pelos direitos humanos. A idéia de igualdade, por exemplo, partindo-se da ruptura do pensamento secular de que os seres humanos nascem diferentes e, portanto, são distintos por natureza, permite a sedimentação da noção de cidadania, conforme cita Jorge Grespan:
“A partir dela (Revolução Francesa), superou-se definitivamente a tradicional concepção de que os homens seriam distintos por natureza, alguns nascendo melhores do que outros, numa visão hierárquica que acompanhou a humanidade por milênios, para ser substituída só tão recentemente pela de que todos somos iguais. Pôde ser, então, finalmente formulada a exigência de cidadania, da participação geral dos homens na tomada política das decisões sobre o seu destino coletivo. Pôde também, por outro lado, radicalizar-se tal exigência na reivindicação por justiça social, em que mesmo as diferenças de classe devem ser abrandadas ou até suprimidas. ” (GRESPAN, 2003, pág. 9).
Deste contexto, continua o autor, surgem os “ideais modernos dos direitos humanos e da igualdade de todos perante a lei”, da mesma forma que surgem os pressupostos para a mudança radical das estruturas sociais, das instituições e, consequentemente, do Estado. A Revolução Francesa de 1789, com seu lema de liberdade, igualdade e fraternidade, representou um marco simbólico das lutas sociais, que visavam o estabelecimento de uma sociedade mais justa e livre. A partir desses valores, a ordem que se estabelecia foi capaz de ascender com uma nova concepção de cidadão, não mais sujeito passivo das opressões cometidas pelo Estado.
Contudo, o Iluminismo não foi produto, somente, dos indivíduos de sua época, representou todo o acúmulo intelectual de várias gerações que o antecederam, envolvido num processo histórico que culminou na Revolução Francesa. A Constituição dos Estados Unidos, que afirmava o direito à vida, à liberdade, à igualdade e à felicidade, foi fruto das lutas por independência e também trouxe os valores construídos durante este processo.
O ponto culminante deste processo foi a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, que tinha como traço a afirmação dos direitos civis sem qualquer tipo de distinção e que, portanto, pretendia alcançar toda a humanidade. Com caráter marcadamente universal, a Declaração exalta o indivíduo como cidadão e estabelece a liberdade e a igualdade de direitos, todos naturais e imprescritíveis, sendo que o Estado tem o dever de protegê-los e conservá-los.
Ao lado dos direitos mencionados há também os direitos: à propriedade, à segurança e de resistência à opressão. Desta forma, chamamos a atenção para esta Declaração que significou um marco na construção da noção de cidadania. Foi assim que o Iluminismos, subvertendo os fundamentos de dominação, foi capaz de propor o império da razão sobre a fé e de colocar o ser humano no centro das questões filosóficas.
O estabelecimento dos conceitos de ser humano, dignidade e direitos humanos foi forjado a partir do desenvolvimento do pensamento moderno e nos arriscamos a dizer que talvez seja uma das grandes utopias da modernidade. A estrutura dos Organismos Internacionais que pretendem preservar os direitos e garantias fundamentais também teve seus alicerces construídos segundo esse tipo de pensamento. De uma forma geral, pudemos perceber que os conceitos, premissas e princípios que nos foram legados fazem parte de um arcabouço histórico, cultural e intelectual fundado a partir das experiências e vivências particulares dos povos ocidentais.
O próprio debate sobre os fundamentos dos direitos humanos, que discute sua origem no direito natural, positivo, histórico ou derivado de um sistema moral não consegue escapar das contribuições ofertadas pelo pensamento moderno. De certa forma, podemos perceber que a modernidade, como fim último de todo o sistema que sustenta o que conhecemos hoje como direitos humanos, neste sentido é paradigmática.
Peguemos, a título exemplificativo, a corrente que defende que o fundamento dos direitos humanos está calcado na historicidade, ou seja, está em constante processo de incorporação de significados. Seus adeptos sustentam que os direitos citados são fruto de uma invenção humana, que estão em constante construção e que, portanto, não são estáticos. Ora, se formos procurar os alicerces deste tipo de construção ou os pressupostos intelectuais que sustentam essa grande descoberta, encontraremos, por trás, todos os contornos do modelo de pensamento que tem como característica os conceitos da racionalidade, estado moderno, liberalismo e natureza, produzidos em um dado momento histórico e numa determinada localidade, o ocidente.
Devemos salientar, ainda, a importância das contribuições liberais e socialistas, no século XIX, no que se refere ao estabelecimento do conceito de igualdade, apesar de atuarem em campos opostos. Para a corrente liberal as premissas de sustentação da igualdade são marcadas pela defesa dos direitos civis e políticos, já para os socialistas este conceito somente poderá ser entendido em sua globalidade se desviarmos nosso foco para a defesa dos direitos sociais e econômicos. Com a formação dos grandes centros urbanos e a consequente exploração da mão de obra, a defesa dos direitos humanos está ligada à luta dos operários por melhores condições de trabalho.
Visando uma sociedade mais justa e livre, as organizações operárias, por meio de suas lutas e reivindicações, passam a agregar conteúdo aos direitos humanos, na dimensão das lutas por justiça social. Ainda assim, percebemos o traço da modernidade servindo de mediador para este debate.
Após os horrores perpetrados nas duas guerras mundiais, o ser humano começa a procurar alternativas eficazes para a preservação de direitos que salvaguardem os indivíduos de ações que representem uma ameaça à sua integridade física e intelectual. Como consequência, a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) é pactuada e uma grande quantidade de tratados e convenções começam a surgir, como instrumentos para a garantia de preservação destes direitos, e que representam a reafirmação de compromissos entre os Estados signatários. Estas conquistas, mesmo sendo fruto das condições sociais e políticas do pós-guerra, apresentam-se, inegavelmente, como um marco ético-político na história da humanidade, na medida em que há a concordância em se defender os direitos humanos como valores fundamentais da democracia.
Contudo, novamente estamos diante de um paradoxo quando percebemos os direitos humanos sendo reafirmados a partir da sua negativa. A ausência de direitos, marca das grandes guerras, é a mola propulsora e o “fundamento de validade” para o reconhecimento e estabelecimento destes mesmos direitos. Consequentemente, foi criado um sistema normativo internacional a partir da internacionalização e universalização dos direitos humanos. Portanto, todos estes relatos nos levam a conceber que os direitos humanos devam ter uma realidade autônoma, independentemente de qualquer sistema político, a partir dos conteúdos e dos paradigmas oferecidos pela modernidade.
([1]) Nota do Autor: Trata-se de um lema latino que significa “atreva-se a conhecer” ou “ouse saber”; também é vagamente traduzido como “ouse ser sábio”, ou ainda mais frouxamente como “tenha coragem de pensar por si mesmo”
([2]) CASSIRER, Ernst. La filosofia de la ilustracion. 3. ed. Cidade do México: Fondo de Cultura Econômica, 1984, p. 19