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quinta-feira, 14 de novembro de 2024

O cemitério

O ano era 1979, em pleno Regime Militar ou Governo Militar, como queiram.

Na cidade de Santos, Litoral Paulista, duas crianças conversavam, Batatinha e Cuquinha. Este último, apelidado pelo fruto da Amendoeira da praia que é uma árvore, pertence à família Combretaceae, nativa da Malásia, mas que sabe se lá porque havia inúmeras na cidade de Santos à época.

Seu fruto recebia o nome de cuca, e por viver roendo as frutas, o infante recebeu o apelido de Cuquinha.

Cuquinha era uma criança esquálida e que viva perambulando pelas praias à procura de comida e às vezes de diversão. Filho de uma mãe separada, o que à época, por ser separada foi colocada à margem da sociedade, pois uma mulher separada no final da década de 70 não poderia ser “uma mulher de respeito”, sendo alçada ao mesmo patamar de uma prostituta, sendo rechaçada pela sociedade e seus familiares e a sanção se estendia aos filhos, motivo que colocava Cuquinha em condição de ter amigos de sua idade somente na rua, pois não podia frequentar as casas dos vizinhos, pois as mães não permitiam.

Para conviver e brincar com os amigos foi obrigado a criar certas regras: encontros na clandestinidade para as peladas, pois se as mães vissem Cuquinha com seus filhos, rápido se ouviam os gritos: Fulano e Beltrano, já para dentro! E Cuquinha passava a não ter com quem jogar bola, ou fosse outra brincadeira, o resultado era o mesmo.

Não bastasse a maldição jogada pela sociedade e seus familiares em sua mãe e por consequência, nele, restavam as consequências econômicas e afetivas, pois a mãe tinha que trabalhar para sustentar cinco filhos e o que conseguia nunca era o suficiente, se quer para alimentar as seis bocas.

Pela manhã a mãe saia de casa e dizia com a cabeça baixa os olhos marejando: “Hoje não tem o que comer, aguentem que no final do dia eu trago algo e comemos juntos.” Com a voz embargada, mal terminava de falar, cerrava a porta e sumia.

Após a fala da genitora e o fechamento da porta, Cuquinha e seus irmãos agiam com expressão de um período de contemplação, oração, reflexão ou meditação silenciosa, como os jogadores fazem nas partidas de futebol, ao comando do juiz, porém, quando despertavam desse período de silêncio, forçados pela cara horrível e desdenhosa da fome que aparecia diante deles, todos pulavam, como que de forma orquestrada, cada um saía e ia se virar como pudesse.

No verão, Cuquinha era habilidoso, fazia cara de triste, pedia nas ruas da cidade, com seu traje usual: descalço, sem camisa, um calção preto e sem cueca, mas no inverno, além de ter que arrumar roupas para vestir, era necessária muita persistência, as negativas aumentavam e algumas pessoas só balançavam negativamente a cabeça. Praias vazias, cidade vazia, pouco dinheiro…pouca comida.

Mas Cuquinha e seu amigo não desistiam, resolveram abrir uma empresa de prestação de serviços dentro do cemitério.

Encontraram alguns que queriam ser sócios, crianças com famílias estruturadas, mas que queriam apenas aventura, entrar no cemitério por pura diversão.

Para estes, Cuquinha e Batatinha concederam a entrada na empresa, mas com uma condição, como tinham televisão em casa, deveriam chamar todos e o horário marcado era o início da sessão corujão que era apresentado na madrugada de sábado.

Para outros, Cuquinha e Batatinha pediram que levassem cal de pintura. Aos a empresa estava pronta para operar, pois foram coletadas latas, brochas de pintura e chegara a noite da realização do primeiro trabalho.

Chegaram em uma lateral escura do cemitério e pularam o muro, repassando o material para os demais.

Arruaram um cantinho no cemitério e esperaram a abertura dos portões e aos poucos as pessoas foram chegando para visitar seus entes queridos.

Quando os associados viram as primeiras ofertas realizadas por Cuquinha e as negativas, abandonaram a empreitada, deixando Batatinha e Cuquinha à frente dos negócios.

Batatinha queria ir embora, pois em sua casa tinha comida, Cuquinha não, pois precisava comer, pois a fome já havia feito enfrentar todos os seus piores medos: do palhaço da perua, o velho do saco, espíritos dos mortos, mas aparentemente, a fome, apesar de matá-la todos os dias, ressurgia no outro dia, cada vez mais forte.

Com muito empenho, contrariou Batatinha ao realizar sua primeira venda para uma senhora que acendia uma vela em uma gaveta.

Cuqinha avistou a senhora com olhos rociados de lágrimas, anafada e em seu vestido preto, com um lenço preto em sua cabeça, mais velha que sua mãe, com uma bolsa e logo imaginou: “essa carrega dinheiro” e de pronto ofereceu os seus serviços: “Senhora, bom dia. Gostaria de pintar o local de descanso do seu ente querido?”

A senhora respondeu com a cabeça positivamente, como se por instinto e Cuquinha não pensou duas vezes pediu para Batatinha pegar as ferramentas que estavam escondidas e iniciaram o serviço.

Um sucesso, poucos minutos depois, receberam pelo serviço e deixaram a senhora rezando para o seu falecido marido.

A animação foi tamanha que tiveram que fazer uma interrupção nos trabalhos para comemorar a primeira venda dos serviços em uma padaria próxima, mas o retorno foi rápido, pois os recursos eram bem menores que a animação.

Venderam mais alguns serviços, encontraram um meio de esconder as coisas e foram embora.

Os finais de semana se passaram e em um deles entraram no cemitério e foram surpreendidos com a ausência do material de trabalho. Mas resolveram esperar amanhecer o dia para procurar entender.

Cuquinha adormeceu, quando acordou e olhou na direção dos que estavam próximos, verificou que não havia mais ninguém, entrou em pânico, pois percebera que algo de estranho acontecia ali.

Resolveu cerrar os olhos e não abrir até o dia amanhecer, foi quando sentiu uma mão em seu pescoço e a voz forte: “Vamos embora moleque!” Naquele momento Cuquinha experimentou pela primeira vez em sua vida dois sentimentos de maneira forte em seu coração: o alívio por ser uma pessoa e o medo de que fosse a polícia e que iria preso por pular o muro do cemitério.

Quando chegou ao portão do cemitério, conduzido pelo seu verdugo, verificou que os amigos estavam na calçada e gritavam em coro: “Achou que iria escapar, se ferrou também!”

Todos voltaram para suas casas rindo, mas Cuquinha voltou pensativo: “É o fim da minha empresa e a fome ganhou novamente”.

Mas Cuqinha teve uma ideia, resolveram não pular mais o muro do cemitério, mas entrar pelo portão como todos, sendo os primeiros a entrar no cemitério de forma taciturna, cabisbaixos, alguns com cartuchos marrons de supermercados dobrados em suas mãos e Cuquinha trazia consigo alguns panos.

Cuquinha alterou o objeto da empresa, resolveu vender mercadorias. Determinou que os vasinhos pequenos, de flores artificiais fossem recolhidos nos cartuchos de papel.

Após a operação, todos foram para rua e começou a operação limpeza, pois tiveram que limpar todos os vasinhos, deixar como novos e retirar qualquer adesivo ou identificação.

Retornaram ao cemitério com os vasinhos nos cartuchos e passaram a oferecer para as pessoas, porém, como eram poucos, todos foram vendidos, mas Cuquinha, insatisfeito com o resultado obtido pela empresa, resolveu tomar outra atitude inusitada, esperar que as pessoas fossem embora, retomar os vasinhos e vende-los novamente.

Mas o que causava certo impasse comercial para a empresa eram as Ave- Marias, pois algumas eram prolongadas demais, interrompidas por choros e soluços e Cuquinha impaciente, colocava a mão na cabeça esperando o fim da Ave Maria. Com o término, Cuquinha deixava um associado próximo e outro que seguiria a pessoa para se certificar que não retornaria.

Foram as melhores épocas comerciais para Cuquinha, chegando a juntar dinheiro em casa espantando a fome das cercanias.

Mas lamentavelmente, por um descuido, a empresa foi obrigada a encerrar suas atividades.

O começo do fim se deu em virtude de Cuquinha ter dado dinheiro para sua irmã mais velha.

Um dia Cuquinha se encontrava em casa, calculando na mente como andavam suas economias, quando sua irmã disse pra ele: “Estou com fome.” No que ele disse bem tranquilo: “Espere aqui!” A irmã ficou sem entender muito atendeu à determinação.

Cuquinha retornou do local de onde guardava os lucros da empresa e deu uma nota de 5 cruzeiros para a irmã. Vá compre algo para você e me traga o troco.

A irmã tinha 15 anos e ficou petrificada, percebeu que tinha algo errado, mas tomou a atitude de resolver a questão da fome primeiro.

A noite chegou e sua mãe também, percebeu que assim que a mãe chegou, sua irmã seguiu-a e conversaram baixo. Verificou um silencio e quando esticou a cabeça viu que a coisa estava muito séria, pois a mãe estava em posição de surra: uma mão na cintura, a outra encostada na cadeira, olhar para baixo e pensativo.

Sua mãe entrou no banheiro e Cuquinha pensou: “Ah, ela vai tomar banho e se acalmar, eu estava enganado.”

A mãe saiu do banheiro com a mangueira do chuveiro e disse: “Você vai me falar agora onde arrumou aquele dinheiro. AGORA!”

Cuqinha falou a verdade: “Eu consegui trabalhando!”

A mãe pisou no pescoço dele e bateu muito em Cuquinha, a dor física era forte, mas o que mais doía era a dor de não ter uma abraço, de não ter um pai presente, de não receber um feliz aniversário, um bolo, uma roupa nova, um beijo, um cuidado, um escove os dentes, penteie o cabelo, comprei isso pra você, você é importante, um te amo, um almoço simples feito pela mãe, um café da manhã, ser coberto pela mãe e receber um beijo, como nos filmes e novelas…

Autor:

Adalberto Conceição de Menezes

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