Crianças sonham com várias profissões e mudam de ideia todo dia: professor, bombeiro médico, enfermeira, super herói, jogador, artista. Ninguém sonha ser coveiro, engraxate, garçom de cabaré ou ascensorista, carreira com altos e baixos. Nunca vi uma só dizer que quer ser político e se aposentar com salário integral, que é o que interessa. Isso elas demoram a aprender.
Hoje, as profissões da moda são virtuais, artificiais e a criança de sonha em ser influenciador, instagramer, tiktoker, ter milhões de seguidores, fama e fortuna rápida. Poucos querem ser empresários, agricultores ou autônomos. Muita dor de cabeça, AVC e problemas cardíacos. Os mais espertos, que não querem trabalho duro, vão para a política.
Mari sempre quis ser educadora, influenciada pela avó que viveu num tempo em que professora era a profissão que 9 entre 10 rapazes sonhavam para suas namoradas. Salário digno, respeito, habilidade para lidar com crianças e longe do assédio de colegas de escritório.
A normalista foi professora substituta, estuda Economia e namora Bento, que cuida das Redes Sociais de um político. Mas aí a avó que a criou, inventou de morrer e Mari teve de se virar sozinha. Bento, agora assessor de senador, chamou-a para morar em Brasília, mas ela queria uma profissão de verdade. Recusou e foi obrigada a trocar o magistério por um emprego na Cia. Pátria, que presta serviços ao Governo. Sofreu mais que joelho de freira na Semana Santa, mas se formou. Bento enricou e namorou muitas militantes em troca de favores políticos.
Tudo corria bem para Mari, até que o governo mudou. A Pátria não entrou no esquema, perdeu o contrato e foi proibida de participar de concorrências. Mari telefonou para o ex namorado, agora suplente de senador.
- Bento, a Pátria tem décadas de experiência e foi substituída por empresa fundada há 3 meses!
- É uma empresa de fachada, em nome do filho do senador. É fake, mas aparenta ser legal.
- É tudo fajuto! Duvido que passem pela homologação.
- Tranquilo. O Chefe de Homologações é de casa e está na folha de pagamento do Partido.
- Não há nada de real no governo? É tudo fake?
- Claro que há. Salário, benefícios, poder. Tudo é real! Hoje comando o Astro, mas o senador vai para o Tribunal no fim do ano e eu assumirei sua vaga.
- Como você pode fazer isso comigo, Bento? Fui sua namorada!
- Não é pessoal, querida. Política é assim mesmo. Nada é o que parece.
A Pátria foi investigada pela Polícia Federal, os sócios processados e os empregados demitidos. Mari saiu por aí, desolada, caminhando a esmo, quando viu um artista de rua tocando violão e cantando Michael Bublé em troca de gorjetas. Ela observou de perto e notou algo estranho.
- Você não está cantando de verdade. Não tem vergonha de enganar as pessoas?
- Isso é um playback. A gente só finge que canta. É o meu talento. Nada é o que parece.
Sidney, o cantor, pareceu-lhe sincero. Conversaram bastante e Mari falou de seu drama pessoal. Ele sugeriu que ela o acompanhasse até o circo onde trabalha. Não pagam muito, mas dá para o gasto e não precisa ter prática. Mari foi apresentada ao gerente, contratada, levada ao camarim e em poucos minutos estava vestida a caráter, com chicote e cartola, mas sem saber qual era o trabalho. As luzes se acenderam e ela se viu numa arena com vários leões. Travou a ponto de cortar charuto com o esfíncter, mas um leão se aproximou, abriu a enorme boca e disse:
- Oi Mari. Se acalma. Sou seu amigo Nelson, ex engenheiro da Pátria. Lembra?
- É você, Nelson? Estou mais assustada que idosa em Montanha Russa! O que você faz aqui?
- Todos os leões trabalhavam na Pátria. Estávamos desempregados e o Sidney arrumou esse bico. O Palhaço é o Raul, do Jurídico, e a Mulher Barbada é a Sheila, do café. O Sidney controla os rugidos lá no estúdio. Nada é o que parece. Só não dê chicotada na gente, tá!
- E essa platéia? Pouca gente e nem parecem interessados.
- São funcionários fantasmas. Batem o ponto, vem para cá passar o tempo e arrumar amantes.
Terminado o show, cada um recebeu R$ 500,00. Mari fez as contas: R$ 500,00 por meia hora de trabalho, R$ 15 mil por mês. É fake, mas é o triplo do eu que ganhava como professora! Então Bento chegou, ladeado por duas periguetes que ele dispensou para ficar a sós com Mari.
- Bento, o que você faz aqui?
- Eu comando o Circo Astro, lembra? É um projeto fake, só para desviar verbas da Cultura.
Bento só queria mostrar à Mari a vida que levaria se o tivesse seguido. Ele nunca estudou, mas se deu bem na política. Está rico, será senador e vive cercado de beldades, enquanto os trouxas trabalham duro para pagar impostos, manter o sistema e aposentar com uma miséria mensal.
- Eu te convidei para morar comigo, mas você preferiu ser professora. Deu no que deu!
- Eu preferi ter um trabalho duro, de verdade.
- Trabalho duro é como tosa em porco: muito grito e pouca lã!
- Mas mantive minha dignidade, embora ganhasse uma merreca. Agora estou desempregada.
- Sem ressentimentos? Fica comigo. Tenho algo bem melhor para você: Gerente do depósito de peças de carros que não estavam à venda. Alguns chamam de receptação de carros furtados para desmanche, mas nada é o que parece.
- Também tenho algo para você – Disse a raivosa Mari enquanto lhe desferia várias facadas.
- Ei! Isso corta! Não se parece com aquelas facas fake usadas no circo.
- Nada é o que parece, querido.
Mexe com quem trabalha duro! Vida que segue.
Excelente crònica!
Até o ritmo, veloz, “combinando” com a superficialidade da vida atual.
Obrigado, Eurídice, pelo comentário. Abs.
Lamentavelmente é esse o mundo que vivemos. E eu pensei que você dedicou a Mari!!!😍🤩
Obrigado pelos comentários, Marie. Abs.
A VIDA IMITA A ARTE, dizem.
Aqui, sua arte imitou a vida
É um tal de um imitar o outro. Nada mais é o que parece. KKK. Obrigado pelo comentário.
Infelizmente, essa é a realidade que vivemos.
Obrigado pelos comentários.
Ótima crônica… planos e planos… longe da realidade por vezes.