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sábado, 16 de novembro de 2024

Bom Verão, Hilda.

29 de novembro de 2023.

A primeira coisa que noto em alguém são os olhos. E nada mais importa depois que se conhece os olhos. Eles me dizem tudo que não precisa ser dito em voz alta.

E esse que eu conheci era preto. Escuro. Não tinha reflexo de nenhuma nuvem, não possuía luz própria e também não filtrava a luz solar de lá fora.

Quando olhei naqueles olhos, me peguei assustada. Afinal, como é que se guarda tanto vazio num olhar, Hilda?

Hilda.

Os olhos dela eu notei primeiro, depois me aproximei e o que vi foi uma vontade imensa de sair correndo, mas a coragem de permanecer.

De se pertencer e acreditar que podia.

O corpo curvado, a cabeça baixa. E a postura que já devia ter me indicado algo, não me fez mais nenhuma revelação.

Perguntei rapidamente o que a Hilda fazia. E a Hilda me disse que ainda não tinha feito nada, que era casada e era só. Nunca pôde trabalhar e o marido, muito ciumento, nunca deixou que ela tentasse nada.

Muita mais velha que eu, mas sozinha. Pequena e frágil. Não perguntei muita coisa, pois não queria me intrometer na vida pessoal, porém não foi preciso.

As pessoas, por algum motivo que desconheço, me contam as coisas. Me despejam segredos, me largam em confissões alheias como se eu fosse o ato de perdão.

E a Hilda, pequena daquele jeito, com um sorriso quebrado e ansioso soltou as palavras antes que eu pudesse interceptá-las. E ela não as jogou, nem despejou. Segurou calmamente no banco e falou comigo, como se fosse uma criança que cresceu antes do tempo.

Na flor da idade, viveu uma aventura. Casou-se com um príncipe. Alto, simpático e cheio.

Cheio de tudo aquilo que ela não possuía ainda. E naquele casamento, antes que se comemorasse as bordas, o príncipe disse que precisava de algo. Ele não era rico de dinheiro, mas tinha conforto e a princípio Hilda acreditou ser amor.

E o “ algo” que ele queria, era tão precioso que precisava ser secreto. Sem que Hilda soubesse, ele pegou com as mãos dedicadas a sua alma, jurando mantê-la guardada junto com a sua. Em honra com compromisso eterno. Ela não sabia o que lhe foi tirado.

E nesses anos a alma de Hilda ficou. Longe do corpo, residindo dentro da casa. Teve duas meninas lindas, que puxaram dela poucos traços. Uma delas, que conheci recentemente, tem os mesmos olhos dela, vazio de esperança, mas cheio de uma bondade jamais vista antes. Uma criança de 9 anos que já descobriu que o mundo é ruim.

E enquanto as meninas cresciam e Hilda se desmanchava, o príncipe se alimentava. E logo suas mãos gentis, tornaram-se ásperas.

A casa, que parecia tão bonita por fora, por dentro apodrecia junto a sua dona. A sua dona que já não usava um blush antigo que lhe dourava as bochechas. Que deixou um par de brincos na cabeceira da cama e o príncipe guardou para si.

De tanto tempo passado na casa, Hilda tornou-se uma parte da casa. Dura, de cimento e esquecida. As pessoas moram na casa,

mas quando se tem uma estrutura tão rígida, é muito facil esquecer que a sustentação está ali. Os arquitetos chamam de pilastra. E de pilastra, tornou-se fantasma.

Um fantasma que sentia, mas não dizia.

As mãos, de ásperas, viraram garras de ferro. E prendiam o fantasma na parede, na cama e a ele.

O príncipe, pensava Hilda, era o príncipe. Nenhum príncipe se torna vilão. As histórias de conto de fadas venderiam se eles virassem?

E assim seguia. A única família que lhe restara era aquela, as filhas sua única vertente de salva-vidas. O bote que o príncipe furava todas as vezes.

Só que tinha um problema, embora sentisse que era invisível, Hilda era vista. E na forma de fantasma, as pessoas notavam o olhar longe, o corpo roxo. A vida que se despedia dela.

A vida que tinha tanto a lhe oferecer e decidiu por conta própria que não podia habitar a morte.

Dos lábios antes rosados, expelia-se agora o odor da ausência.

Das olheiras antes vagas, agora restavam caixões abaixo dos olhos. Do coração saudável, restava agora um miocárdio partido.

Da risada que lhe escapava quando via uma coisa engraçada, tornou-se um silêncio funérico.

Quando eu conheci Hilda, a única coisa que ela me deu foi uma gentileza inabalável. Uma recarga de humanidade. A primeira coisa que senti quando vi o hematoma que se estendia antebraço afora não foi pena ou dó. Foi tristeza. A dor dela me comovia, logo eu que na vida nunca me compadeci a uma alma perdida.

E nos poucos minutos que passei, vi que os seus olhos, apesar da vasta escuridão, tinham uma chama sendo cultivada. Florescendo, sendo adubada.

E por ser uma mulher muito gentil, não era uma chama de ódio. Era resiliência. Caminhou com as próprias pernas e deixou o príncipe à própria sorte, pois precisava construir o próprio reino, não viver como consorte. Precisava de mais. Mais do que aquele castelo puído de tudo que era bom.

Da casa assombrada, ergueu-se uma nova planta. O fantasma que ali vagava, correu para o túmulo que lhe pertencia, desbravou lindamente as roseiras que lhe causaram feridas. Olhou-se no pequeno espelho há muito tempo esquecido e viu que não tinha nada além de uma cara empalidecida.

São raras as vezes em que há sobreviventes, mas dessa vez, o destino cruzou a morte em um resgate. Jogou no peito dela não só um sopro de vida, mas de fênix renascida das cinzas.

E deu a ela um lugar para ficar com as filhas, um emprego e o telefone da polícia.

Hilda completou 37 anos e está vivendo a vida pela segunda vez, a primeira foi roubada.

O peito avermelhado por baixo da blusa dela, revela para mim, uma mera espectadora, as marcas de que não foi uma luta justa.

E ainda sim, no dia 27 de novembro, a vida daquela mulher traçou afiadamente um novo rumo.

Embora tenha chegado cabisbaixa, nervosa e ter ido pro refeitório para se acalmar porque estava nervosa com seu primeiro emprego, ela voltou.

Ela voltou.

Ela voltou.

18 anos anos não podem ser recuperados. Nem uma guerra que se luta enquanto desaparece do mapa deixa de deixar marcas.

Mas eu, na minha solene existência, tive a sorte de conhecer pessoalmente a Coragem, que muitas das vezes batalhou sem armas.

Somente os corajosos brigam a mais difícil das brigas, aquela que é a luta por si mesmo. Pra viver. Pra existir. Pra sobreviver. Sobreviver num mundo que apaga sua luta a cada denúncia esquecida.

O príncipe de Hilda a violentou tantas vezes que os roxos passaram a não doer mais. E na cama, quando ele a obrigava a fazer coisas que ela não queria, ela não sentia mais nada.

E não sonhava. E não falava.

E morria.

E o príncipe, Oh grande príncipe, seguia intocável no seu castelo assombrado. Inexorável.

Quantas vezes, nesse meio tempo, ela precisou de uma massagem cardíaca? Pelas filhas, já que não queria viver por si mesma.

O reflexo bate constante na cabeça dela. Um lembrete que a fuga é temporária e efêmera à vista. O sol é uma fresta que derrete sua fita.

E me pego pensando o que ela pensa quando tá olhando longe, tão longe que não sei se me escuta, mas eu pergunto mesmo assim: “O que foi, Hilda?”

E ela me responde. “ Nada.”

E naquele nada, sei que reside o medo. E esse medo é “ E se ele voltar?”

E ele volta.

No dia 30 a Hilda não aparece. Dia 31 também não.

E ela não volta.

Nunca mais a vejo.

Só que me lembro dela, quando vejo outras vítimas.

E me lembro dela quando torno a nunca mais ver, anos depois, nem mesmo as filhas.

Autoria:

Beb Babinsky.

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