Sempre fui ótimo aluno de português e péssimo em geografia. Um dia, era uma sexta-feira chuvosa e de muito calor, cheguei relativamente cedo ao colégio e dei de cara com a professora de geografia. Ela me olhou como quem olha quando fala um palavrão. Onetti dizia que as palavras sujas elevam a temperatura do encontro, mas ela se manteve calma (colégio não é motel) e educadamente disse que queria conversar comigo no fim da aula. Respirei fundo e concordei com um breve gesto.
A chuva deixou de chover, o sol ficou ainda mais bonito e a aula começou. A matéria era sobre o planisfério, mapa que representa toda a superfície do planeta Terra. A professora explicou que a geografia é a mais literária de todas as artes. Reúne várias ciências, como geologia, climatologia e biologia. E acabou dizendo que etimologicamente geografia é a escritura do mundo. A aula terminou, todo mundo saiu, inclusive a professora, e eu fiquei sentado, esperando, esperando…
Depois de uns quinze minutos, ela voltou sorrindo. Bonita, agora usava calça justa, blusa cropped, tênis Reebok e os cabelos soltos dando a impressão de que o vento do ano passado ainda soprava neles. E foi direto ao assunto. Disse que houve uma reunião com o diretor e alguns professores e que eu fui o motivo dessa reunião, mas ninguém fez queixa de mim; pelo contrário, todos estavam satisfeitos com meu rendimento escolar, principalmente o Zacharias, meu professor de português e, mais tarde, um grande amigo. Meu desempenho foi várias vezes avaliado nos aspectos qualitativos e quantitativos e sempre me saí bem. Terminada a reunião, ela, muito indignada, resolveu conversar pessoalmente comigo. Afinal, eu era um péssimo aluno só em geografia.
Perguntou o que era para mim a geografia. Parafraseando Ambrose Bierce, respondi que Deus usa a guerra para ensinar geografia aos americanos. A indignação dela se transformou em raiva, o sorriso inicial desapareceu e os traços do rosto pareciam um cemitério de resíduos nucleares.
Disse-lhe então que amava São Paulo e, muito mais, o meu bairro. E que não tinha nenhum interesse em nada que estivesse fora da minha cidade. Tentei explicar que São Paulo, para mim, não é um lugar geográfico, mas sim um estado mental, meu limite, ir mais longe não preciso…
Com minha inseparável caneta na mão, comecei a falar para a professora que São Paulo está localizado na Região Sudeste, que o estado faz divisa com Minas Gerais, Mato Grosso do Sul, Paraná e Rio de Janeiro, representando 3% do território brasileiro, e que as coordenadas geográficas da capital são: longitude oeste: -46.84; longitude leste: -46.36; latitude norte: -23.36 e latitude sul: -24.00.
O lema da cidade, presente em seu brasão oficial, é Non ducor, duco, frase latina que significa “Não sou conduzido, conduzo”. Fundada em 1554 por padres jesuítas, a cidade é mundialmente conhecida, exerce forte influência nacional e tem significativa importância internacional, tanto do ponto de vista cultural, como econômico e político. São Paulo tem altitude média de 760 metros e a serra da Cantareira é uma das maiores florestas urbanas do mundo.
Há um bairro em São Paulo, Bela Vista, mais conhecido por Bixiga, onde eu morava e se respirava cultura, magia, sonhos, teatro, biblioteca, tudo a poucos minutos do centro da cidade. Não era exatamente um bairro, e sim um estado de alma, onde o mundo não era um problema e as ausências eram sempre resolvidas. O único bairro onde os motéis tinham cama redonda com a cabeceira de curvim com som embutido. O clima era sempre de pecado, isso na melhor metade do céu. Isso, Bela Vista é a melhor metade do céu! E a gente adorava quando Roberto Carlos cantava “no seu corpo, minhas mãos se deslizam e se firmam numa curva mais bonita…”.
“Professora”, disse eu, “aprendi a nadar no rio Tietê, onde a água era verdadeira. E comecei a entender e amar a natureza no Horto Florestal, ou Parque Estadual Alberto Löfgren. Então, não preciso saber que o maior rio de Hamburgo é o Elba, que o rio Sena fica na França e o Mondego em Portugal. Você me ensinou que o Brasil foi descoberto por Pedro Álvares Cabral, mas na verdade foi uma invasão à terra dos índios. Não quero saber da Europa, onde só com Alzheimer os idosos aceitam uma cuidadora negra. Onde as pessoas confundem fazer xixi com anatomia. Não quero saber da geografia de um país que colonizou e roubou o Brasil. Semana passada você deu uma aula inteira sobre o Grand Canyon, no estado do Arizona, Estados Unidos. Mas não perdeu nenhum segundo pra dizer que nesse mesmo país existem escolas preparatórias pra ditadores…”
A partir desse dia a professora começou a me considerar um bom aluno de geografia. E, como São Paulo, continuei não sendo conduzido…
Autor:
Heriberto Noppeney