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quarta-feira, 19 de junho de 2024

Iara

Nome bonito, significa aquela que mora nas águas. Setembro de 2023 tive o primeiro contato com Iara, menina com semblante suave, cabelo encaracolado no ombro, vestia um short jeans e uma blusinha listrada. Entrou por aquele portão, cabeça baixa, parecia estar com vergonha. Lair a trouxe. Me aproximei dela, e antes de cumprimentá-la, Lair em tom baixo começou a descrever a menina. Em um minuto narrou uma breve história, porém forte, marcada. “Raquel, Iara era moradora de rua, perdeu sua mãe para o álcool, não conhece seu pai, ela não estuda em colégio, mora na comunidade e cuida de quatro pessoas na casa onde mora, mas é uma boa menina, precisa de uma oportunidade e uma luz. Tem doze anos e vai fazer treze em dezembro”. Quando ela terminou de contar, olhei para Iara e ela olhou para baixo, fui até ela, dei um abraço e disse: “seja bem-vinda! Vamos entrar para fazer sua ficha?”

Caminhamos até a sala três e lá estavam minhas colegas de projeto, abriram um sorriso e cumprimentaram-na. Sentou-se ao meu lado, peguei a ficha e pedi que ela fosse me falando seus dados pessoais. Nome: falou baixinho meio embolado seu nome completo. Brinquei com ela: “Seu nome é lindo, fala alto!” Ela abriu um sorrisinho e conseguiu pronunciar melhor, era comprido seu nome. Idade: “doze anos”. Data do seu nascimento: Houve um silêncio no ar… Lair interveio e disse: “coloca dezembro só”. Naquele momento percebi algo diferente. Olhei para ela e disse: “Que mês lindo que você nasceu, dezembro! Não importa se não lembra a data e o ano!”

Lair me olhou e falou baixinho: “ela não tem nenhum registro.” Meu coração deu uma acelerada, senti um frio na barriga e um sentimento enorme de compaixão por ela. Sabe aquele momento que você tem vontade de acolher, de abraçar e dizer: “eu estou aqui com você agora para o que precisar?” Pois é, senti tudo isso, mas achei que era cedo para falar algo, queria conhecer e conviver mais com ela para aos poucos ir soltando meu coração e deixando o dela bater mais forte de amor. Continuando a preencher a ficha, nome do pai e nome da mãe, um constrangimento, mas ela fez questão de falar, e ao lado do nome escrevi in memorian. Nunca imaginei que preencher uma ficha corriqueira seria tão difícil. Telefone do responsável: “não tem, é melhor a pessoa que mora com ela escrever”, disse Lair. Nome da Escola: essa eu nem falei, pulei também. Ao final havia um espaço para colocar a assinatura do responsável. Olhei para Lair e disse: “você que vai assinar?” Ela respondeu: “é melhor não, a pessoa que mora com ela pode assinar”. Olhei para Iara e disse: “está animada de começar o projeto?” Ela deu um sorrisinho e respondeu que sim. Percebi que ela começou a ficar incomodada e quis ir embora. Tantas perguntas sem respostas, ou com respostas que ela não gostaria de dar.

Me conectei tanto com ela, o olhar, o seu jeito tímido de falar, e senti que Iara é forte, quer enxergar uma pequena esperança na vida, mesmo tão nova, mas já muito experiente da escola da vida, dura, injusta. Ela toma conta de quatro crianças, faz faxina na casa, cozinha e não tem tempo para estudar, não lhe sobra esse luxo. Quantas Iaras, Joanas, Marias encontramos na mesma situação, com as mesmas dificuldades de não saber sua real identidade e seu papel no mundo, estão apenas vivendo, passando seus dias sem sonhos, sem expectativas e sem alegria, achando que a vida é só trabalho, nessa idade, tão jovem. Onde foram parar suas bonecas, seus brinquedos, suas conversas com suas amigas para se divertirem? Qual dia que comemora o seu nascimento, como pode esperar por esse dia, se ele não existe, se não está registrado? Como Iara tocou meu coração nesse instante que a conheci, como somos privilegiados por termos tudo na vida e às vezes nem valorizamos esse tudo, queremos sempre mais e mais. O que é felicidade para Iara? É receber um abraço, alguém dizer que a ama? Lanchar um sanduíche na lanchonete? Ouvir as histórias da sua família que poucos conhecem? O que será que passa pela cabeça dela quando dorme à noite no seu travesseiro? Naquele dia eu voltei para casa tão sensível, com tanta vontade que o projeto começasse logo, para eu poder dizer tudo para Iara, que ela é muito importante na vida, que merece ser feliz, que tem o direito de sonhar, que ela é linda, que merece muitos abraços e beijos. De uma coisa eu tenho certeza, nos momentos que eu estiver perto dela isso tudo não vai faltar! Pedi a Deus nessa noite que Ele me permita ser um instrumento de paz, de amor, de companheirismo, de empatia, de afeto para acolher esse serzinho tão indefeso, puro e que precisa saber tantas coisas boas da vida! Que esse projeto comece logo porque quero participar dessa construção da autoestima e empoderamento de Iara para que ela possa enxergar o que a vida tem de bom a oferecê-la! Que Deus me cubra de talentos e sensibilidade para tocar seu coraçãozinho com muito amor e que ela renasça e floresça para a vida.

Autora:

Raquel Pádua

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