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sábado, 20 de dezembro de 2025

Sincretismo Religioso e Umbanda: Resistência Afro-brasileira

O sincretismo religioso é muito mais do que uma mistura de crenças diferentes. Quando falamos sobre a Umbanda e as religiões de matriz africana no Brasil, estamos falando de algo que nasceu da história de um povo que sofreu, mas nunca desistiu de sua espiritualidade. O sincretismo não é uma fraqueza – é uma forma inteligente de resistência e de manter viva a identidade cultural.

A Raiz do Sincretismo: Estratégia de Sobrevivência

No século XVII, quando os primeiros africanos escravizados chegaram ao Brasil, eles não podiam mais praticar sua religião livremente. Os colonizadores portugueses puniam severamente quem venerava os deuses africanos, forçando essas pessoas a encontrarem maneiras criativas de manter sua espiritualidade.

O sincretismo nasceu dessa necessidade. Os povos escravizados “esconderam” e suas divindades africanas sob o nome de santos católicos. Iansã tornou-se Santa Bárbara, Oxalá virou Jesus Cristo, e Iemanjá tornou-se Nossa Senhora dos Navegantes. Assim, continuavam a rezar para seus orixás (deuses), mas de forma que os colonizadores não conseguiam proibir. Era uma forma brilhante de preservar a identidade africana mesmo sob perseguição.

A Evolução da Umbanda: Uma História de Transformação

A Umbanda passou por várias transformações ao longo do tempo. Começou com o Calundu (século XVII), uma religião que misturava crenças africanas, indígenas e católicas. Depois veio a Cabula, depois a Macumba, até finalmente a Umbanda, que foi oficialmente organizada em 1908.

Quando a Umbanda foi criada, seus fundadores não abandonaram as raízes africanas – na verdade, as preservaram e reorganizaram. Mantiveram a comunicação com ancestrais e espíritos, continuaram venerando os orixás, incorporaram ideias do espiritismo e respeitaram também as cosmologias indígenas. A Umbanda é, portanto, uma criação genuinamente brasileira, original e profundamente valiosa.

Uma Questão Importante: O Significado do Sincretismo

Alguns teóricos modernos questionam se a palavra “sincretismo” é ainda adequada. Eles argumentam que essa palavra pode parecer que as religiões africanas foram “diluídas” ou “impuras”. Preferem usar palavras como “hibridismo” (mistura de culturas diferentes) ou “bricolagem” (criar algo novo com peças diferentes).

Essa discussão é importante porque mostra respeito pelas raízes africanas. Mas a verdade é: a Umbanda é uma criação genuinamente brasileira, autêntica e respeitosa com todas as culturas que a formaram. O que realmente importa é reconhecer que a Umbanda nasceu de tradições africanas, indígenas e católicas, e que isso não a torna inferior – pelo contrário, a torna especial.

Intolerância Religiosa: Um Problema Grave Hoje

Estudos mostram que no Rio de Janeiro, por exemplo, mais de 1.560 crimes de intolerância religiosa foram registrados em um ano – isso significa mais de quatro ataques por dia. Muitas vezes, esses ataques vêm de igrejas evangélicas neopentecostais, que começaram a atacar sistematicamente a Umbanda e outras religiões africanas a partir dos anos 1980.

​Esse preconceito é muito sério porque não está atacando apenas uma religião, mas a herança espiritual de pessoas negras e afrodescendentes. Está negando a essas pessoas o direito fundamental de praticar sua religião livremente.

Por Que a Umbanda É Importante

Além de sua história, a Umbanda oferece algo profundo para quem a segue: um caminho para se conhecer melhor, encontrar equilíbrio espiritual e viver em harmonia. A religião é baseada em princípios de caridade e respeito, e acredita que cada pessoa é parte importante do universo.

Cada terreiro de Umbanda é um pouco diferente dos outros. Alguns enfatizam mais as raízes africanas, outros o espiritismo, outros ainda o candomblé. Essa diversidade mostra que a Umbanda é viva, dinâmica e se adapta às pessoas que a praticam. Isso é um ponto forte, não uma fraqueza.

Conclusão: Reconhecer e Respeitar

O sincretismo religioso da Umbanda não é um erro que precisa ser corrigido. É uma riqueza que devemos celebrar. Mostra como um povo que sofreu conseguiu transformar a dor em espiritualidade, a restrição em liberdade, e a perda em comunidade e pertencimento.

Defender a Umbanda significa defender a liberdade religiosa e o direito das pessoas negras de honrar seus ancestrais e sua espiritualidade sem sofrer perseguição. Significa reconhecer que o Brasil é muito mais rico culturalmente graças ao sincretismo e à multiplicidade de expressões espirituais que caracterizam nossas tradições.

A Umbanda merece não apenas tolerância, mas respeito pleno como uma das expressões mais autênticas, criativas e espiritualmente valiosas da religiosidade brasileira.

* Pai Lucas de Xangô é Sacerdote e Diretor da FENARC ( Federação Espiritualista Nacional Afro-Religiosa e Cultural),escritor e ativista da valorização das religiões de matriz africana no Rio Grande do Sul.

Referências Bibliográficas:

COSTA, Hulda Silva Cedro da. Umbanda, uma religião sincrética e brasileira. 2013. 177 f. Tese (Doutorado em Ciências da Religião) – Pontifícia Universidade Católica de Goiás, Goiânia, 2013. ​

DIAS, David. Sincretismo na Umbanda: pactos e impactos na identidade dos povos de terreiro. Editora Encruzilhadas, 2023.

SOARES, Claudio; JOST, Tuila. Axé Amor Amém: sincretismo religioso no Brasil. 2024. (Prefácio de Carlinhos Brown

Pai Lucas de Xangô
Pai Lucas de Xangô
Sacerdote do C.E.U Reino de Xangô & Jurema, Diretor do Departamento da Natureza & Sustentabilidade da FENARC, militante ambiental e defensor das religiões de matriz africana no RS.

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