Dizem que a Inteligência Artificial chegou para organizar o mundo. Prometem a eficiência dos processos, a previsibilidade dos cenários e a eliminação do erro humano. Mas me pergunto, enquanto observo o trânsito travado da Marginal ou a fila de um cartório: será que o algoritmo está preparado para o Brasil?
O debate global sobre a IA foca no medo de que as máquinas desenvolvam consciência. Por aqui, o buraco é mais embaixo. O nosso medo, ou talvez a nossa esperança, é que a máquina tente entender a nossa “inconsciência” coletiva e entre em curto-circuito. Porque o Brasil não opera na lógica binária do silício; opera na lógica quântica da gambiarra.
Há um abismo fascinante entre o “caos interior” que nos define como humanos e a ordem estéril que a IA tenta impor. A tecnologia é apolínea; busca o padrão, a repetição, a resposta estatisticamente correta. O brasileiro, por sua vez, é dionisíaco por excelência. Somos feitos de contradições que nenhum código consegue indexar. Como explicar a um modelo de linguagem o conceito de “saudade”? O software pode varrer o dicionário e dizer que é “nostalgia melancólica”, mas jamais entenderá o peso físico que essa palavra tem numa canção de Tom Jobim ou numa despedida no aeroporto de Guarulhos.
O nosso caos interior é a nossa assinatura. É a capacidade de rir na tragédia (basta ver os memes cinco minutos após uma crise política) e de chorar na alegria, como na Sapucaí. A IA procura o caminho mais curto entre dois pontos. O brasileiro sabe que a vida acontece nos desvios, nas conversas de esquina, no “quebra-galho” que resolve o insolúvel. Se entregarmos a gestão da nossa realidade a uma inteligência puramente lógica, corremos o risco de sanear o que nos torna vitais.
Além disso, há o perigo de importarmos uma “ordem” que não nos serve. Os algoritmos são treinados majoritariamente com dados do Hemisfério Norte, onde as regras são respeitadas e os horários são sagrados. Aplicar essa rigidez matemática à realidade elástica do Brasil é um convite ao desastre ou à exclusão. A IA vê um CPF; nós vemos uma história de luta. A IA vê uma comunidade no mapa como “zona de risco”; nós sabemos que ali pulsa uma potência criativa e econômica que escapa às planilhas.
O verdadeiro desafio não é se a IA vai roubar os nossos empregos, até porque a informalidade brasileira sempre foi uma forma de resistência à estrutura formal, mas se ela vai roubar a nossa capacidade de lidar com o imprevisto. Estamos terceirizando o pensamento, a memória e, assustadoramente, a criatividade. Mas a criatividade humana nasce, muitas vezes, do erro, da falta, da necessidade de improvisar. Se a máquina nunca erra, ela nunca inventa. E o Brasil é o país da invenção por necessidade.
No fim das contas, a Inteligência Artificial pode vencer no xadrez ou diagnosticar doenças com precisão (o que é muito bem-vindo), mas falta a ela a “ginga”. Falta a malícia de saber que, no Brasil, o “não” nem sempre é definitivo e o “sim” é muitas vezes apenas uma gentileza.
Que venha a tecnologia, mas que ela sirva como ferramenta, e não como bússola moral. Porque, num mundo cada vez mais artificial e previsível, o nosso caos humano, demasiadamente humano e tropical, talvez seja o último refúgio da verdadeira inteligência: a emocional. A máquina pode ter o mapa, mas só nós conhecemos o terreno.
Autor:
Nuno Nabais Freire

