Enquanto acendia seu segundo cigarro esperando por Castro em frente à casa dele, Ana observava a fumaça subir devagar, como se cada espiral carregasse um pouco do tempo que ela havia perdido.
Naquele dia completavam-se quatro meses desde que começou a trabalhar voluntariamente para ele. Quatro meses de dedicação, promessas e ilusões embaladas em palavras bonitas.
Desempregada, Ana havia recebido o convite com o entusiasmo de quem acredita que a vida está prestes a mudar. Castro, amigo de longa data do seu marido, sempre fora tratado como da família. Talvez por isso ela tenha se permitido acreditar tanto — acreditou nele, nos projetos, nas ideias, em tudo.
Castro era muito querido na casa de Ana e todos o tratavam como se fosse de casa, sem cerimônia.
No início, Ana ficou deslumbrada em estar no centro da capital federal, circulando entre deputados e senadores e pensou internamente que ali era seu mundo.
Entre uma visita e outra dos gabinetes da Câmara, o cigarro os unia em breves pausas de cumplicidade. A amizade crescia e, com ela, a admiração genuína. Ana via em Castro um irmão, um mestre. Mas, aos poucos, começou a perceber que aquele homem atravessava os limites com a mesma facilidade com que atravessava portas.
De gabinete em gabinete, Ana olhava admirada a desenvoltura dele e queria muito ter um pouquinho só da facilidade em adentrar cada recinto sem ser convidado. Mas, havia alguns momentos em que Ana ficava constrangida com tamanha liberdade que Castro tinha com alguns parlamentares. Ela até tentava alertá-lo, tentando lapidar aquele diamante bruto, mas seus esforços eram em vão. Castro achava que podia tudo, que tudo estava ao seu dispor. Ana, então, pensou em como teria sido a infância daquele homem. Será que ele não tinha sido educado para saber que havia limites em tudo na vida? Pelo jeito não. Andando com ele, ela teve certeza que limite foi a única coisa que Castro não teve em seus ensinamentos e ela começou a ver a ponta do iceberg de decepção aparecer naquele cenário que ela acreditava que seria o mais promissor para ela.
Entre idas e vindas ao Congresso, Ana estava exausta, psicologicamente falando, por sentir que suas visitas estavam sendo infrutíferas e sem objetivo. Castro não tinha metas. Andava atarantado de um lado para o outro em busca de um networking e parecia nunca estar satisfeito. Eram tantos projetos que ele se envolvia que Ana se contorcia por dentro por sentir que tudo aquilo estava sendo em vão.
Castro parecia não ligar para os feedbacks de Ana que insistentemente tentava fazê-lo refletir na importância de sair de casa com objetivos e aquilo passou a incomodá-la. O brilho dela foi se apagando aos poucos e Ana sentiu que seus sonhos estavam muito distantes de serem realizados ao lado de Castro.
Mesmo cansada dos dias exaustivos ao lado de Castro, Ana tentava ver o lado cheio do copo; chegava em casa cheia de ideias e varava a noite até ver o dia raiando trabalhando nos infinitos projetos que Castro dava para ela fazer. No início, Ana não se incomodou, pois ela se sentia útil novamente, mas, depois de algum tempo, Ana tirou a venda de seus olhos e passou a observar friamente tudo ao seu redor: todos os projetos que Castro pegava era Ana que executava e, para a surpresa de Ana, Castro começou a boicotá-la. E dali em diante foi só ladeira abaixo. Uma surpresa atrás da outra.
A primeira foi quando Castro combinou com ela que todos os projetos em que eles estavam trabalhando seriam divididos meio a meio entre eles e Ana acreditou piamente naquela promessa. Ana se dedicou ainda mais aos projetos que Castro demandava e a noite para descansar deixou de existir. Ana tinha sede de ver resultados; tinha fome dos próximos projetos e quando Ana se deu conta, estava viciada em sentir a adrenalina de esperar pelo próximo comando de Castro. Só que Ana chegou à exaustão, pois já não sabia mais quem era a não ser a assessora direta de Castro. Sua família e sua casa foram colocadas de lado, pois Ana estava tão submersa nas promessas de Castro de que iriam alçar voo com todos aqueles projetos infindáveis que Ana colocou todas as suas expectativas naquelas vãs promessas e, para a decepção dela, veio a primeira paulada: Castro havia ficado com setenta por cento de um projeto que eles conseguiram finalizar.
A dor da decepção foi tamanha que Ana se esforçou para não perder as estribeiras com Castro e se conteve. Centrada, colocou as cartas na mesa e disse a ele que sabia que estava sendo enganada por ele, ao que ele pareceu arrependido, e Ana resolveu dar uma nova chance para ele e frisou que não haveria uma segunda chance para as mentiras dele, pois ela estava se doando demais para ser traída novamente. Mas, aquele comportamento de Castro foi só o primeiro de muitos que viriam. As mentiras de Castro eram as mais sem sentido: ele sempre dizia que estava sem recursos, mas sempre tinha bala na agulha para fazer uma compra, pagar um pedreiro ou outro compromisso e Ana ficava na esperança de ser paga pelos serviços prestados e nada disso acontecia.
Certa tarde de um sábado, Ana foi trabalhar como voluntária em um evento de uma determinada empresa em que Castro havia colocado ela como assessora e se deparou com o cenário mais degradante que ela poderia viver, profissionalmente falando.
Desprovida de recursos financeiros naquele dia, pois ela só tinha promessas de pagamento e nada de receber, Ana pediu gentilmente a Castro que comprasse uma carteira de cigarro para ela, ao que Castro respondeu imediatamente que não tinha um centavo no bolso. Até aí, tudo bem, mas Castro começou a perguntar para os diretores presentes quem poderia comprar uma carteira de cigarro para ela. Ana ficou com tanta vergonha por estar sendo o centro das atenções e se ver naquela cena: uma profissional com a bagagem que ela tinha, dedicada ao extremo para aquela empresa que ela trabalhava sem ganhar nada em troca, passando pelo absurdo de ver quem iria comprar uma simples carteira de cigarro.
O mais difícil para Ana foi ver as pessoas da diretoria daquela empresa se esquivando, dizendo que não tinham dinheiro e Ana se deu conta que seu trabalho não valia nem uma carteira de cigarro e a fragilidade tomou conta dela. Para piorar, Ana teve a infelicidade de descobrir ao final do dia que Castro não só tinha dinheiro como havia comprado oito carteiras de cigarro para ele. Ana chorou com uma dor insuportável no peito. Se sentiu traída, desvalorizada profissionalmente e a deslealdade de Castro culminou no sentimento de ira jamais tido antes em Ana. Não se tratava da carteira de cigarro, mas pela situação vexatória pela qual Castro a submeteu, sendo que ele poderia ter evitado tudo; foi pela mentira deslavada dele em dizer que não tinha quando tinha, mais uma vez; foi a decepção de ver comportamentos tão esdrúxulos, tão pequenos vindo de uma pessoa que ela chegou a considerar como um grande irmão; foi a dor de sentir na pele a traição pela segunda vez.
Sentindo-se enganada, Ana pôs um fim naquela parceria que estava adoecendo ela de tal forma que ela não conseguia mensurar.
Naquele mesmo dia, Ana escreveu sua carta de demissão.
Respirou fundo, apagou o último cigarro e, com ele, todas as promessas.
A fumaça subiu, mas, pela primeira vez, ela não olhou para cima.
Olhou ao redor — viu a casa, a família, e, no reflexo do espelho, reencontrou a si mesma.Ana desejou não ter conhecido Castro. Mas compreendeu que era preciso atravessar a névoa para ver o céu.
Reergueu-se.
Abriu as gavetas, soprou o pó dos próprios sonhos e voltou a sonhar — agora, sozinha.
E, sem pedir licença a ninguém, alçou voo.

