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segunda-feira, 3 de novembro de 2025

Sabe Quando Vou Me Preocupar? Só Quando a Coca-Cola For Falsificada

A fala do governador Tarcísio de Freitas, que só começará a se preocupar com as mortes provocadas pela contaminação por bebidas adulteradas quando a Coca-Cola for falsificada, não é apenas uma declaração infeliz ou uma insensibilidade grosseira. Ela é um sintoma escancarado da biopolítica moderna, nascida do pensamento de Foucault, que deixa claro como o poder estatal maneja a vida das populações selecionando quais vidas interessam preservadas e quais podem ser deixadas à deriva, entre o abandono e a zombaria. Nesta lógica, o Estado não apenas falha em proteger seus cidadãos, mas instrumentaliza suas vidas, administrando a existência para a produção e manutenção de um corpo social útil e rentável, e descartando aqueles que saem dos parâmetros de valor.

Essa “preocupação seletiva” reafirma a natureza da biopolítica sob a égide do biopoder, onde a gestão dos vivos se baseia em critérios que misturam valor econômico, político e ideológico. O governador escolhe como prioridade as vidas que “valem o refrigerante oficial” e ignora as outras que morrem de metanol barato, uma expressão cruel do “deixar morrer” por delegação direta do poder. A mesma ascendência de governança que nas palavras brutais de Bolsonaro se manifestou no desdém sarcástico do “não sou coveiro, tá?”, e no slogan infantilóide “quem é de direita toma cloroquina, quem é de esquerda toma tubaína”. Em ambos os casos, uma política de biopoder que discrimina a vida, normalizando a morte para parcelas inteiras da população sob a aparência de uma gestão racional da vida.

O que Foucault nos ensina é que a biopolítica não opera simplesmente pela repressão ou exclusão abrupta, mas pela regulação detalhada, pela maximização de vidas úteis e simultaneamente pelo abandono de vidas consideradas supérfluas. O Estado passa a identificar, categorizar e gerir indivíduos e coletividades como problemas biológicos e políticos, selecionando quais corpos devem ser protegidos, vigiados e qualificados para a produtividade, e quais podem ser sacrificados ao abandono institucional, tudo isso sob o verniz da “normalidade administrativa”.

Assim, a piada mordaz do governador que só se move quando a Coca-Cola, ícone do consumo legítimo, for falsificada é, na verdade, uma declaração de propriedade sobre quem merece atenção e quem pode ser descartado. É a materialização da biopolítica em seu estágio mais cruel: um poder que administra a vida enquanto deixa morrer sem remorso, que mascara o genocídio da invisibilidade sob a sudação das coletivas de imprensa, como se se tratasse de um problema menor, meramente uma questão de “marcas e falsificações”. Em um país com tantas vidas desvalorizadas, essa fala indica o grau máximo de alienação e subserviência do poder ao capital simbólico, em que as mortes de sujeitos que não carregam o rótulo “oficial” são invisibilizadas e até celebradas na fria ironia.

Se a pandemia escancarou esse biopoder e seus riscos mortais sob a forma do “não sou coveiro”, a crise das bebidas adulteradas apresenta sua face complementar: um Estado que escolhe zombar, que eleva a banalidade do desprezo a política de gestão, que prefere esperar a falsificação da Coca-Cola do que proteger o cidadão comum. Essa é a governança moderna da biopolítica foucaultiana: a vida gerida como mercadoria e a morte como ferramenta de disciplina social, um chamado aberto para aceitar a morte de uns para garantir a vida “de qualidade” de outros, sempre com um sorriso ácido e uma dose de sarcasmo como senha de entrada no poder.

Nesse cântico amargo do poder sobre a vida, o Brasil contemporâneo se revela uma necropolítica sutil, onde o Estado não apenas governa as vidas, mas escolhe quais vidas importam o bastante para que a cruel administração da morte não seja apenas uma piada de mau gosto, mas uma política oficial. A gestão biopolítica, com seus cálculos sobre quem vive e quem morre, é a face sombria do poder que se oculta sob slogans, refrigerantes e frases de efeito, assinando em nome do Estado a sentença de quem merece o copo cheio e quem fica com o copo vazio da indiferença.

Manuel Flavio Saiol Pacheco
Manuel Flavio Saiol Pacheco
Doutorando e Sociologia e Direito pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Mestre em Justiça e Segurança pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Especialista em Desenvolvimento Territorial pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).. Possui ainda especializações em Direito Tributário, Direito Constitucional, Direito Administrativo, Docência Jurídica, Docência de Antropologia, Sociologia Política, Ciência Política, Teologia e Cultura e Gestão Pública e Projetos. Graduado em Direito pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Advogado, Presidente da Comissão de Segurança Pública da 14º Subseção da OAB/RJ, Servidor Público.

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