A fala do governador Tarcísio de Freitas, que só começará a se preocupar com as mortes provocadas pela contaminação por bebidas adulteradas quando a Coca-Cola for falsificada, não é apenas uma declaração infeliz ou uma insensibilidade grosseira. Ela é um sintoma escancarado da biopolítica moderna, nascida do pensamento de Foucault, que deixa claro como o poder estatal maneja a vida das populações selecionando quais vidas interessam preservadas e quais podem ser deixadas à deriva, entre o abandono e a zombaria. Nesta lógica, o Estado não apenas falha em proteger seus cidadãos, mas instrumentaliza suas vidas, administrando a existência para a produção e manutenção de um corpo social útil e rentável, e descartando aqueles que saem dos parâmetros de valor.
Essa “preocupação seletiva” reafirma a natureza da biopolítica sob a égide do biopoder, onde a gestão dos vivos se baseia em critérios que misturam valor econômico, político e ideológico. O governador escolhe como prioridade as vidas que “valem o refrigerante oficial” e ignora as outras que morrem de metanol barato, uma expressão cruel do “deixar morrer” por delegação direta do poder. A mesma ascendência de governança que nas palavras brutais de Bolsonaro se manifestou no desdém sarcástico do “não sou coveiro, tá?”, e no slogan infantilóide “quem é de direita toma cloroquina, quem é de esquerda toma tubaína”. Em ambos os casos, uma política de biopoder que discrimina a vida, normalizando a morte para parcelas inteiras da população sob a aparência de uma gestão racional da vida.
O que Foucault nos ensina é que a biopolítica não opera simplesmente pela repressão ou exclusão abrupta, mas pela regulação detalhada, pela maximização de vidas úteis e simultaneamente pelo abandono de vidas consideradas supérfluas. O Estado passa a identificar, categorizar e gerir indivíduos e coletividades como problemas biológicos e políticos, selecionando quais corpos devem ser protegidos, vigiados e qualificados para a produtividade, e quais podem ser sacrificados ao abandono institucional, tudo isso sob o verniz da “normalidade administrativa”.
Assim, a piada mordaz do governador que só se move quando a Coca-Cola, ícone do consumo legítimo, for falsificada é, na verdade, uma declaração de propriedade sobre quem merece atenção e quem pode ser descartado. É a materialização da biopolítica em seu estágio mais cruel: um poder que administra a vida enquanto deixa morrer sem remorso, que mascara o genocídio da invisibilidade sob a sudação das coletivas de imprensa, como se se tratasse de um problema menor, meramente uma questão de “marcas e falsificações”. Em um país com tantas vidas desvalorizadas, essa fala indica o grau máximo de alienação e subserviência do poder ao capital simbólico, em que as mortes de sujeitos que não carregam o rótulo “oficial” são invisibilizadas e até celebradas na fria ironia.
Se a pandemia escancarou esse biopoder e seus riscos mortais sob a forma do “não sou coveiro”, a crise das bebidas adulteradas apresenta sua face complementar: um Estado que escolhe zombar, que eleva a banalidade do desprezo a política de gestão, que prefere esperar a falsificação da Coca-Cola do que proteger o cidadão comum. Essa é a governança moderna da biopolítica foucaultiana: a vida gerida como mercadoria e a morte como ferramenta de disciplina social, um chamado aberto para aceitar a morte de uns para garantir a vida “de qualidade” de outros, sempre com um sorriso ácido e uma dose de sarcasmo como senha de entrada no poder.
Nesse cântico amargo do poder sobre a vida, o Brasil contemporâneo se revela uma necropolítica sutil, onde o Estado não apenas governa as vidas, mas escolhe quais vidas importam o bastante para que a cruel administração da morte não seja apenas uma piada de mau gosto, mas uma política oficial. A gestão biopolítica, com seus cálculos sobre quem vive e quem morre, é a face sombria do poder que se oculta sob slogans, refrigerantes e frases de efeito, assinando em nome do Estado a sentença de quem merece o copo cheio e quem fica com o copo vazio da indiferença.

