Por Pai Lucas de Xangô

O Rio Grande do Sul enfrenta uma crise ambiental sem precedentes. As enchentes escancararam a vulnerabilidade do estado frente às mudanças climáticas. Poluição do ar, degradação do solo e contaminação da água são sintomas de um modelo que esgota o que deveria preservar. Diante desse cenário, é urgente ouvir e valorizar os saberes ancestrais — como os das religiões de matriz africana —, mas também repensar práticas que, por força da urbanização, precisam ser adaptadas para o presente.
É preciso também reconhecer que, apesar de toda a tradição de cuidado com a natureza presente nas religiões afro-gaúchas, a realidade urbana impôs desafios. O uso de materiais não biodegradáveis em oferendas, muitas vezes resultado da adaptação ao mundo moderno, exige agora um novo olhar. Diversos terreiros já estão se organizando para orientar suas comunidades no uso de materiais naturais — folhas, frutas, flores —, em consonância com os princípios originais da tradição. Essa autorreflexão é necessária, e não representa uma perda de identidade, mas sim um fortalecimento do elo entre fé e natureza.
Historicamente, os povos de terreiro sempre trataram a natureza como sagrada. Rios, florestas, ventos, pedras: todos são expressões do sagrado e devem ser respeitados. É uma visão ecológica na prática, muito antes da palavra “sustentabilidade” virar moda. No entanto, o as comunidades obtém imenso acesso a materiais industrializados — como plásticos e recipientes sintéticos, garrafas e embalagens — que acabaram incorporando novos elementos aos rituais. Nem sempre por escolha, mas por desconhecimento ou falta de alternativas acessíveis.
O resultado é que, sem perceber, práticas originalmente sustentáveis passaram a gerar resíduos que não se integram ao ambiente, causando desconforto na sociedade e conflito com órgãos ambientais. Isso alimenta discursos intolerantes, criminaliza manifestações culturais e, o mais grave, afasta as religiões de matriz africana de sua própria essência: o cuidado com a vida em todas as suas formas.
Ao invés de ceder à perseguição ou se retrair diante do preconceito, muitas lideranças religiosas têm reagido com consciência e sabedoria. Terreiros em muitas cidades vêm desenvolvendo ações educativas internas para orientar sobre o uso de materiais biodegradáveis. Em alguns casos, há parcerias com órgãos públicos, com orientação ambiental e respeito à fé. Essa é uma resposta potente — que mostra como tradição e modernidade podem caminhar juntas.
Mais do que uma exigência externa, essa mudança é uma coerência interna. Adaptar as oferendas à realidade ecológica é, na verdade, um retorno às raízes. É manter o valor simbólico da oferenda e, ao mesmo tempo, proteger o meio ambiente que é sagrado para a religião. É dizer: a fé não precisa agredir para ser respeitada.
Claro que essa mudança não pode ser feita sozinha. É preciso que o poder público reconheça e respeite os saberes tradicionais. Que haja diálogo, escuta e apoio técnico para que os terreiros possam realizar suas práticas com dignidade e sustentabilidade. Que o racismo ambiental, tão presente quando se criminaliza uma flor na beira do rio e se ignora o despejo tóxico de uma empresa, seja combatido com políticas públicas justas.
A autorreflexão das comunidades afro-gaúchas sobre suas práticas ambientais não enfraquece a fé: a fortalece. Reforça o compromisso com a ancestralidade, com os Guias e Orixás, com a natureza e com as futuras gerações.
O futuro passa por um novo pacto com a terra, com as águas e com os ventos. E as religiões afro-brasileiras, com sua sabedoria profunda, podem e devem ser protagonistas desse processo. Mas, para isso, é preciso coragem para olhar para dentro — e transformar com consciência o que for necessário, sem perder o que é essencial.
* Pai Lucas de Xangô é Sacerdote e Diretor do Departamento da Natureza & Sustentabilidade da FENARC ( Federação Espiritualista Nacional Afro-Religiosa e Cultural), militante das causas ambientais e da valorização das religiões de matriz africana no Rio Grande do Sul.