O Tambor é objeto consagrado. Orixás e Guias firmam esse instrumento, que invoca divindades e conduz o transe religioso. Africanos escravizados trouxeram esse instrumento ao Brasil. Ele representa mais que um artefato cultural: é uma entidade viva. Recebe batismo e reverência, conforme as tradições ancestrais.
Proteção Constitucional: Liberdade Religiosa como Direito Fundamental
A Constituição Federal de 1988 garante a liberdade religiosa. Seu artigo 5º, inciso VI, assegura “o livre exercício dos cultos religiosos”. Também protege “os locais de culto e suas liturgias”.
Esta proteção constitucional vai além da crença íntima. Ela abrange toda a exteriorização da fé: rituais, instrumentos litúrgicos e manifestações sonoras indissociáveis do culto.
O Estado brasileiro é laico. O artigo 19, inciso I, da Carta Magna veda que entes federativos “embaracem” o funcionamento de cultos religiosos.
A Defensoria Pública da União atua junto aos povos de terreiro. Ela reforça que a liberdade religiosa não se restringe à crença. Ela engloba o direito ao livre exercício dos cultos e à proteção dos locais e liturgias. O Estado deve assegurar essas garantias sem discriminação.
O Supremo Tribunal Federal reconheceu, de forma unânime, a constitucionalidade de práticas litúrgicas essenciais das religiões de matriz africana. Um exemplo é o julgamento do Recurso Extraordinário 494.601. O STF validou o sacrifício ritual de animais como manifestação legítima da liberdade religiosa.
Este precedente estabelece limites claros. O Estado não pode impor restrições desproporcionais a elementos centrais das liturgias religiosas. A única exceção: quando configurarem abuso ou crueldade.
O Tambor como Patrimônio Cultural Imaterial
Além da proteção religiosa, os tambores têm amparo constitucional como patrimônio cultural. Os artigos 215 e 216 da Constituição Federal reconhecem os bens de natureza imaterial como patrimônio cultural brasileiro.
Especialmente protegidos estão “as formas de expressão” e “os modos de criar, fazer e viver” dos diferentes grupos formadores da sociedade.
O Decreto Federal 3.551/2000 instituiu o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial. Ele criou instrumentos específicos para salvaguardar manifestações como os toques de tambor. Esses toques estão inscritos no Livro de Registro das Celebrações e no Livro de Registro das Formas de Expressão.
O termo “Ilú”, de origem iorubá, designa mais que o instrumento. Ele representa a primeira forma de comunicação entre os povos. Os tamboreiros (alabês) são os responsáveis pela manutenção dessa tradição ancestral.
Esta dimensão cultural reforça um ponto importante. A sonoridade dos tambores não é mera “poluição sonora”. É expressão cultural protegida pelo ordenamento jurídico brasileiro.
Perturbação de Sossego? Ponderação de Direitos Fundamentais
Terreiros e casas de religião afro-brasileira frequentemente enfrentam alegações de perturbação de sossego. Essas situações demandam análise jurídica rigorosa. O princípio da proporcionalidade é fundamental neste contexto.
O STF aplica amplamente esse princípio. Ele exige que qualquer restrição a direitos fundamentais seja adequada, necessária e proporcional em sentido estrito.
Adequação e Necessidade
A legislação brasileira estabelece limites sonoros específicos. A Resolução CONAMA 01/1990 e a NBR 10.151 fixam patamares de 55 decíbéis para áreas residenciais durante o dia. No período noturno, o limite é de 50 decíbéis.
Porém, essas normas se aplicam a atividades industriais, comerciais e recreativas em geral. Elas não podem ser impostas mecanicamente a manifestações religiosas. É necessário considerar a proteção constitucional específica dessas práticas.
O Senado Federal reconhece a inadequação desses limites para templos religiosos. O projeto de lei PL 5100/19 estabelece critérios diferenciados , e vem sendo discutido justamente para trazer novos olhares ao tema.
Proporcionalidade em Sentido Estrito
A jurisprudência brasileira pondera direitos fundamentais em casos de som religioso. O Tribunal de Justiça de Minas Gerais reconheceu que “a liberdade religiosa é garantida pela Constituição, mas não é absoluta”. Ela deve respeitar o direito ao sossego e à saúde pública.
Porém, o tribunal determinou apenas adequação sonora com isolamento acústico. Não proibiu a atividade litúrgica.
O tambor nas religiões de matriz africana é instrumento sagrado. Ele é indispensável à própria realização do culto. Não é elemento decorativo ou opcional.
Os tambores diferem das amplificações eletrônicas. Eles são tocados manualmente conforme toques ritualísticos específicos.
Cada toque tem função litúrgica determinada.
Proibir ou restringir arbitrariamente seu uso inviabiliza a própria celebração religiosa. Isso configura embaraço constitucionalmente vedado.
Intolerância Religiosa e Racismo Estrutural
A discussão sobre “perturbação de sossego” não pode ignorar o contexto histórico. Além disso, é necessário reconhecer o racismo religioso atual que atinge desproporcionalmente as religiões afro-brasileiras.
A Defensoria Pública da União reconhece que a intolerância religiosa contra os povos de terreiro está vinculada ao racismo estrutural brasileiro. Isso configura violação sistemática de direitos humanos. Por isso, exige resposta estatal ativa e políticas públicas específicas de proteção.
Os dados do Ministério dos Direitos Humanos são reveladores. Em 2024, 60,9% das denúncias de intolerância religiosa atingiram praticantes de umbanda e outras manifestações de matriz africana. Isso representa crescimento de 66,8% em relação ao ano anterior.
Este cenário demonstra que as religiões afro-brasileiras continuam sendo alvos preferenciais. Elas sofrem discriminação, violência e tentativas de silenciamento. Essas ações muitas vezes se disfarçam sob argumentos aparentemente neutros como “perturbação de sossego”.
As religiões afro-brasileiras têm histórico de perseguição. Foram criminalizadas nos Códigos Penais de 1890 e 1942. Os pretextos incluíam “curandeirismo” e “exercício ilegal da medicina”. Elas sofreram perseguição sistemática até a década de 1960.
A persistência de argumentos sobre “barulho excessivo” dirigidos especificamente a terreiros revela viés discriminatório. Enquanto isso, outras manifestações religiosas recebem tratamento diferenciado. Esse comportamento contraria o artigo 5º, VI, da Constituição. Esse artigo veda “perseguição por causa de convicções ou prática religiosa”.
O Papel das Defensorias Públicas na Proteção dos Direitos dos Terreiros
A Defensoria Pública da União desempenha papel fundamental na defesa dos povos de terreiro. Ela atua em casos de discriminação religiosa, questionamento de alvarás e interdições arbitrárias de espaços sagrados. Também combate outras formas de cerceamento da liberdade de culto.
Esta atuação institucional reconhece a vulnerabilidade histórica dessas comunidades. Por conseguinte, exige proteção estatal qualificada, conforme determina o princípio constitucional da igualdade material.
Além disso, a DPU atua na conscientização sobre os direitos constitucionais dos terreiros. Ela orienta comunidades religiosas sobre como reagir juridicamente. Isso inclui casos de impedimento ou restrição desproporcional de práticas litúrgicas. Também abrange o uso de instrumentos musicais sagrados.
Soluções Equilibradas: Diálogo e Adequações Razoáveis
A harmonização entre liberdade religiosa e direitos de vizinhança não exige o silenciamento das liturgias afro-brasileiras, mas pode ser alcançada mediante medidas razoáveis e proporcionais:
- Diálogo comunitário: Estabelecimento de Audiências Públicas para compreensão mútua sobre horários e natureza das celebrações;
- Horários pactuados: Concentração de rituais com calendário litúrgico específico;
- Reconhecimento oficial: Concessão de alvarás simplificados (como o “Alvará Afro”) que reconheçam a especificidade das manifestações religiosas de matriz africana, eximindo-as de exigências incompatíveis com sua natureza;
- Educação para a tolerância: Implementação de políticas públicas educacionais que promovam o conhecimento e o respeito às religiões de matriz africana, combatendo estereótipos e preconceitos.
Respeito à Ancestralidade e à Pluralidade Religiosa
O tambor nas religiões de matriz africana não é ruído, é oração. Não é perturbação, é celebração. Não é barulho, é memória ancestral.
Essa memória ecoou como resistência. Ressoa nos terreiros como fé. Reverbera na cultura brasileira como patrimônio imaterial inestimável.
A proteção jurídica desta manifestação não constitui privilégio. É aplicação rigorosa dos princípios constitucionais da liberdade religiosa, igualdade, laicidade estatal e valorização da diversidade cultural.
Conforme destaca a Defensoria Pública da União, a defesa dos direitos dos povos de terreiro é defesa da própria democracia brasileira. Também representa o compromisso constitucional com uma sociedade plural, inclusiva e respeitosa.
Em uma democracia plural, o Estado não pode silenciar as vozes dos orixás. Essas vozes atravessaram o Atlântico nos porões dos navios negreiros. Encontraram no Brasil solo sagrado para continuar existindo.
É importante que a própria comunidade do axé compreenda que, embora o toque dos tambores seja expressão legítima da fé e protegido constitucionalmente, o uso excessivo e prolongado pode sim gerar atritos entre vizinhos e na coletividade. Reconhecer essa realidade não enfraquece a luta pelo direito ao som sagrado, mas demonstra maturidade para dialogar e buscar soluções equilibradas.
Afinal, viver em sociedade exige consideração mútua, e adaptar horários e intensidades dos toques em determinados contextos pode fortalecer o respeito tanto à tradição religiosa quanto ao bem-estar comunitário.
Defender o direito ao toque dos tambores é defender a própria Constituição brasileira. Ela reconhece em cada batida de tambor não apenas um som. Reconhece a pulsação viva da identidade afro-brasileira, a afirmação da dignidade de um povo e o compromisso com uma sociedade verdadeiramente livre, justa e fraterna.
* Pai Lucas de Xangô é Sacerdote e Diretor da FENARC ( Federação Espiritualista Nacional Afro-Religiosa e Cultural), militante da valorização das religiões de matriz africana no Rio Grande do Sul.

