O Brasil atravessa um momento fundamental no processo de regulamentação das apostas esportivas. Após anos de lacunas legais desde a Lei nº 13.756/2018, que permitiu a modalidade de apostas de quota fixa, foi somente em 2023 que o país consolidou um marco mais robusto com a Medida Provisória nº 1.182, a Emenda Constitucional nº 132 e, especialmente, a Lei nº 14.790. Esse conjunto normativo buscou não apenas formalizar uma indústria já bilionária, mas também estabelecer parâmetros tributários, regulatórios e de fiscalização que garantam segurança jurídica, arrecadação e proteção ao consumidor.
O avanço mais significativo está no desenho tributário do setor. A lei instituiu um modelo específico que incide diretamente sobre o rendimento bruto das apostas, o chamado Gross Gaming Revenue (GGR), tributado em 12% após a dedução dos prêmios pagos e do imposto de renda retido sobre essas premiações. Desse percentual, 2% são destinados à Seguridade Social, e o restante é repartido entre áreas estratégicas como educação, esporte, turismo, saúde e segurança pública, reforçando o caráter extrafiscal e social da tributação. Para os apostadores, estabeleceu-se a cobrança de 15% de imposto de renda sobre os prêmios líquidos que ultrapassem a faixa inicial da tabela progressiva do IRPF, criando um mecanismo de captação de receita também no âmbito individual.
Além desse regime específico, os operadores estabelecidos no Brasil continuam sujeitos à carga tributária tradicional: IRPJ e CSLL a uma alíquota combinada de 34% sobre o lucro, PIS e Cofins em 9,25% sobre a receita bruta, e ainda discussões em torno da incidência do ISS por parte de municípios, como São Paulo. Essa sobreposição de tributos suscita debates relevantes. A acumulação de PIS e Cofins com a contribuição de 12% sobre o GGR, por exemplo, levanta questionamentos constitucionais, uma vez que já existe previsão de contribuição específica sobre receitas de concursos de prognósticos. Há ainda o desafio de evitar que essa tributação se torne excessiva a ponto de violar o artigo 3º do Código Tributário Nacional, que veda impostos com efeito confiscatório.
Do ponto de vista econômico, o impacto é expressivo. Entre 2021 e abril de 2024, o setor registrou crescimento de 734,6% segundo levantamento da Datahub, o que evidencia o apetite do mercado, mas também reforça a necessidade de um modelo tributário que mantenha o equilíbrio entre arrecadação e competitividade. Se o Brasil adotar uma carga excessivamente onerosa, corre o risco de incentivar a migração de apostadores e operadores para plataformas não licenciadas, reduzindo a eficácia da regulação e comprometendo tanto a arrecadação quanto a proteção ao consumidor.
Outra questão sensível é a da segurança jurídica. A lei exige que empresas de apostas obtenham credenciamento, paguem taxas e cumpram requisitos rigorosos para operar. Contudo, a ausência de regulamentações complementares claras ainda gera incertezas quanto à base de cálculo de alguns tributos, à legalidade da incidência de ISS sobre a atividade e à fiscalização das obrigações acessórias. Além disso, os vultosos contratos de patrocínio firmados entre as “bets” e os clubes esportivos brasileiros intensificam a necessidade de transparência e controle para evitar conflitos de interesse e assegurar integridade ao esporte.
Por fim, não se pode perder de vista o aspecto da responsabilidade social. A regulação tributária não deve servir apenas para ampliar a arrecadação, mas também para sustentar políticas públicas de prevenção ao vício em jogos, de governança no relacionamento entre apostas e esporte e de comunicação clara com os consumidores. A tributação, nesse contexto, é mais do que um instrumento fiscal, é um pilar para estruturar um mercado sustentável, competitivo e socialmente responsável.
Os avanços da Lei nº 14.790/2023 são inegáveis, mas a consolidação do modelo dependerá da forma como seus dispositivos serão aplicados e harmonizados com a Constituição e com a realidade econômica. O Brasil tem a oportunidade de se tornar referência regulatória na América Latina, desde que consiga equilibrar arrecadação, segurança jurídica e responsabilidade social. A construção desse equilíbrio é, sem dúvida, o maior desafio do momento.
Autor:
Dr. Ivson Coêlho é advogado especialista em direito tributário. – E-mail: drivsoncoelho@nbpress.com.br.
Sobre Dr. Ivson Coêlho
Dr. Ivson Coêlho é advogado, procurador do Município de Manaus, pós-graduado em Direito Tributário pelo CIESA, mestre e doutoramento em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza, pós-doutoramento pela Universidade de Salento, na Itália. Já exerceu os cargos de procurador-chefe da Procuradoria do Contencioso Tributário, subprocurador-geral e procurador-geral do Município de Manaus. Saiba mais em: https://ivsoncoelho.adv.br/site/ e https://br.linkedin.com/in/ivson-co%C3%AAlho-17b857146.