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domingo, 28 de setembro de 2025

Quando até a água é negada: a desumanização dos moradores de rua

Um simples gesto de humanidade — colocar um bebedouro nas ruas de Juiz de Fora — virou palco para o mais sujo espetáculo do preconceito. Bastou a prefeitura instalar algo que pudesse aliviar a sede daqueles que não têm nem um copo em casa, para que, nos comentários de uma página do Facebook, jorrasse ódio. Li gente espera o equipamento de “bebedouro para nóia”, como se a sede fosse privilégio reservado apenas aos “cidadãos de bem”. É esse o nível da sociedade: até a água passa a ser hierarquizada conforme o CEP, aparentemente, o cheirinho do perfume francês ou a marra de empresário.

A violência não está apenas nas ruas, mas também nos olhos de quem olha. É como se uma pessoa em situação de rua fosse um ser inferior, um “não-humano”, alguém que perdeu o status de gente. Mas quem decretou isso? Quem assinou o decreto de desumanização coletiva? Porque a vida é frágil, e a única linha que separa um “homem de bem” de uma marquesa fria muitas vezes é uma demissão, uma depressão, uma dependência química, um adicional, uma falta de rede de apoio. Mas a multidão que digita com os dedos gordos em seus celulares parece ter perdido totalmente a capacidade de perguntar: e se fosse comigo?

É assustador o quanto normalizamos o desprezo. Se alguém morre de sede na calçada, o comentário é: “ah, devia trabalhar”. Se alguém bebe água do bebedouro, o grito é: “olha lá o nóia sugando impostos nossos”. As pessoas falam como se cada um tivesse escolhido deliberadamente a rua, como quem escolhe um plano de internet. É cruel, é mesquinho e, sobretudo, é um reflexo da nossa covardia coletiva. É fácil odiar quem está embaixo. Difícil é assumir que a sociedade fracassou, que o Estado falhou e que a indiferença mata tanto quanto o frio.

O que mais espanta é perceber que já não há indignação com a miséria, mas com qualquer tentativa de amenizá-la. O que revolta não é um desgaste social, mas o bebedouro. Que tipo de gente se incomoda porque outro ser humano vai beber água? Que destruição interior aconteceu para que alguém veja aquilo como “perda de dinheiro público” e não como um mínimo sinal de civilidade?

Desumanizar virou o esporte do dia. O “pobre” virou vagabundo, o “morador de rua” virou zumbi, o “dependente químico” virou caso perdido. É tanto rótulo, tanta palavra cuspida com nojo, que os comentaristas esquecem: ali respiram pessoas. Pessoas que riem, que choram, que tremem de frio, que têm fome, que têm sede. Gente. Apenas gente.

A verdade é uma só: não ficaremos apenas mais intolerantes. Estamos ficando desumanos. Perdemos o músculo da empatia, atrofiamos a sensibilidade. Preferimos rir do desconforto do que estender a mão. E, nesse caminho, talvez estejamos nos tornando algo pior do que “nóias”: nos tornando monstros.

Manuel Flavio Saiol Pacheco
Manuel Flavio Saiol Pacheco
Doutorando e Sociologia e Direito pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Mestre em Justiça e Segurança pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Especialista em Desenvolvimento Territorial pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).. Possui ainda especializações em Direito Tributário, Direito Constitucional, Direito Administrativo, Docência Jurídica, Docência de Antropologia, Sociologia Política, Ciência Política, Teologia e Cultura e Gestão Pública e Projetos. Graduado em Direito pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Advogado, Presidente da Comissão de Segurança Pública da 14º Subseção da OAB/RJ, Servidor Público.

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