Um simples gesto de humanidade — colocar um bebedouro nas ruas de Juiz de Fora — virou palco para o mais sujo espetáculo do preconceito. Bastou a prefeitura instalar algo que pudesse aliviar a sede daqueles que não têm nem um copo em casa, para que, nos comentários de uma página do Facebook, jorrasse ódio. Li gente espera o equipamento de “bebedouro para nóia”, como se a sede fosse privilégio reservado apenas aos “cidadãos de bem”. É esse o nível da sociedade: até a água passa a ser hierarquizada conforme o CEP, aparentemente, o cheirinho do perfume francês ou a marra de empresário.
A violência não está apenas nas ruas, mas também nos olhos de quem olha. É como se uma pessoa em situação de rua fosse um ser inferior, um “não-humano”, alguém que perdeu o status de gente. Mas quem decretou isso? Quem assinou o decreto de desumanização coletiva? Porque a vida é frágil, e a única linha que separa um “homem de bem” de uma marquesa fria muitas vezes é uma demissão, uma depressão, uma dependência química, um adicional, uma falta de rede de apoio. Mas a multidão que digita com os dedos gordos em seus celulares parece ter perdido totalmente a capacidade de perguntar: e se fosse comigo?
É assustador o quanto normalizamos o desprezo. Se alguém morre de sede na calçada, o comentário é: “ah, devia trabalhar”. Se alguém bebe água do bebedouro, o grito é: “olha lá o nóia sugando impostos nossos”. As pessoas falam como se cada um tivesse escolhido deliberadamente a rua, como quem escolhe um plano de internet. É cruel, é mesquinho e, sobretudo, é um reflexo da nossa covardia coletiva. É fácil odiar quem está embaixo. Difícil é assumir que a sociedade fracassou, que o Estado falhou e que a indiferença mata tanto quanto o frio.
O que mais espanta é perceber que já não há indignação com a miséria, mas com qualquer tentativa de amenizá-la. O que revolta não é um desgaste social, mas o bebedouro. Que tipo de gente se incomoda porque outro ser humano vai beber água? Que destruição interior aconteceu para que alguém veja aquilo como “perda de dinheiro público” e não como um mínimo sinal de civilidade?
Desumanizar virou o esporte do dia. O “pobre” virou vagabundo, o “morador de rua” virou zumbi, o “dependente químico” virou caso perdido. É tanto rótulo, tanta palavra cuspida com nojo, que os comentaristas esquecem: ali respiram pessoas. Pessoas que riem, que choram, que tremem de frio, que têm fome, que têm sede. Gente. Apenas gente.
A verdade é uma só: não ficaremos apenas mais intolerantes. Estamos ficando desumanos. Perdemos o músculo da empatia, atrofiamos a sensibilidade. Preferimos rir do desconforto do que estender a mão. E, nesse caminho, talvez estejamos nos tornando algo pior do que “nóias”: nos tornando monstros.