Há quem imagine golpe como algo cinematográfico: tanques rugindo pelas avenidas, generais de óculos escuros em cadeia nacional e marchas militares ensaiadas para o espetáculo televisivo. Mas o Brasil, sempre dado às suas próprias originalidades tropicais, resolveu reinventar o gênero. Nosso “golpe surpresa” não precisou de farda nem de baioneta: bastou uma toga, algumas linhas eloquentes de decisão e, no final, o truque mais velho da política nacional — salvar o chefe e fritar o subalterno.
Luiz Fux, em gesto solene, condena Mauro Cid com a gravidade de quem descobre o protagonista de toda uma conspiração. O ajudante, o “faz-tudo”, vira o cérebro do plano. Bolsonaro? Absolvido. Os generais de plantão? Ilibados. Os empresários que sonhavam com tanques na rua? Cegamente inocentes. É como acusar o estagiário de incendiar a biblioteca enquanto o diretor da instituição sai na foto recebendo flores pelo combate às chamas.
O espetáculo é belo, no sentido mais cínico da estética política. A encenação se dá com a plasticidade de uma ópera: a toga tremula, a decisão brilha, e o bode expiatório entra em cena para que a plateia bata palmas e volte para casa acreditando na harmonia das instituições. Em vez do clássico “ninguém solta a mão de ninguém”, temos agora o “ninguém solta a mão do chefe, só a do ajudante mesmo”.
Afinal, Bolsonaro é sempre o mesmo personagem: o inocente útil da própria trama. Não sabia de nada, não assinou nada, não viu nada. Seu grande talento político é cultivar a ignorância estratégica, quase uma performance artística. O mito é absolvido porque, no fundo, sua figura já ultrapassa o campo do jurídico: é uma entidade que não se contamina com as próprias falas, que não se suja com as próprias ações. Como punir alguém que opera acima da realidade, no puro teatro da narrativa?
Mauro Cid, ao contrário, é gente demais para ser perdoado. Escreveu, falou, registrou. Em sua prosa de mensagens e intenções, deixou material de sobra para que se construa sobre ele a face do culpado. A justiça precisa de um vilão para sustentar a ideia de imparcialidade — e Cid, com seu rosto anônimo e com a conveniência de não ser mito de ninguém, encaixou-se perfeitamente.
A ironia é óbvia, dolorosamente óbvia: enquanto o país foi às ruas acreditando lutar contra a sombra do autoritarismo, a democracia brasileira fez um pacto silencioso com sua própria hipocrisia. Punir um, perdoar todos. Condenar o eco, salvar a voz. O “golpe surpresa” não é militar, mas teatral — uma encenação habilidosa onde aplausos se confundem com risadas nervosas.
O último ato, claro, já está escrito: Mauro Cid, condenado, vira símbolo de um país em que o fio da responsabilidade é sempre cortado na parte mais frágil. E Bolsonaro, livre, reaparece como paladino injustiçado, pronto a escrever mais um capítulo de sua saga mitológica. No palco, Luiz Fux — mágico habilidoso — nos mostra o truque do coelho na cartola, enquanto a plateia, ainda meio encantada, finge acreditar que viu justiça e não apenas ilusão.