Há filmes que entram em nossa pele como um sussurro e outros que chegam com o grito, a arrebentação bruta que desarruma tudo ao redor, deixa a alma inquieta e a mente inquieta. “A Substância” é exatamente este último tipo — um filme que não se contenta em ser mera distração, mas se impõe como um espelho cruel da sociedade e do corpo feminino hoje, reluzindo no escuro das obsessões contemporâneas pela juventude, pela perfeição, pelo controle absoluto do físico.
A protagonista Elisabeth Sparkle, interpretada por Demi Moore, é o símbolo dessa tragédia moderna: uma ex-estrela do universo televisivo que encontra na promessa de uma substância “milagrosa” a chance da sobrevivência, não apenas profissional, mas existencial. Porém, este renascimento imposto é um pesadelo que questiona a essência da identidade, da autenticidade e do preço brutal cobrado por se mediarmos pela imagem — ampliando um debate caro a Charles Taylor e Paul Ricoeur sobre quem somos quando o “eu ideal” parece estar em guerra com o “eu real”. A transformação que Elisabeth sofre, com suas consequências grotescas e desumanizantes, é um convite à reflexão sobre a biopolítica do corpo, a mercantilização da feminilidade e o sofrimento infligido pelo espetáculo do consumo e descarte.
Uma das camadas mais instigantes do longa é a relação com a comida, que vai muito além do ato de se alimentar. A comida no filme é símbolo e rito — de controle, de revolta, de autoaniquilamento, e também de busca por pertencimento. Elisabeth, que inicialmente se priva, em sintonia com os padrões estéticos, depois se deixa consumir compulsivamente, como que internalizando a lógica cruel da sociedade do consumo de corpos e emoções. Isso ecoa as reflexões de Mary Douglas e Claude Lévi-Strauss na antropologia, para quem a alimentação é espaço de construção social, e a crítica à medicalização da estética ganha um tempero visceral através desse elemento, como uma metáfora perfeita para o ciclo incessante de prazer e repulsa que nos define.
A direção corajosa de Coralie Fargeat abraça o exagero do body horror para, ao mesmo tempo em que escancara o grotesco, denunciar a cultura do “mais é mais” da juventude eterna e do corpo perfeito, um horror que é tanto físico quanto simbólico. Entre esguichos de sangue e texturas quase palpáveis, “A Substância” desafia o espectador a confrontar sua própria cumplicidade — na busca, na admiração, na repulsa — diante de um cinema não só visual, mas sensorial, emocional e filosófico que incomoda e fascina.
A obra pode ser por vezes exaustiva em sua intensidade quase insustentável, mas é essa excentricidade que lhe confere vitalidade e voz. Um grito que sacode nosso falso conforto e nos força a encarar as nossas próprias fissuras. Na interseção entre filosofia da identidade, antropologia da alimentação e sociologia do corpo, “A Substância” é muito mais do que um filme de terror: é um convite dramático e perturbador a pensar o que custa ser humano em um mundo que parece querer nos transformar em versões descartáveis de nós mesmos.
Nota: 9,0 — uma experiência que impacta e provoca, forte e imperdível, com sua dose certa de agonia e beleza absurda.