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quinta-feira, 25 de setembro de 2025

Dica de Filme: A Substância: O Grito Invisível do Corpo que Consome

Há filmes que entram em nossa pele como um sussurro e outros que chegam com o grito, a arrebentação bruta que desarruma tudo ao redor, deixa a alma inquieta e a mente inquieta. “A Substância” é exatamente este último tipo — um filme que não se contenta em ser mera distração, mas se impõe como um espelho cruel da sociedade e do corpo feminino hoje, reluzindo no escuro das obsessões contemporâneas pela juventude, pela perfeição, pelo controle absoluto do físico.

A protagonista Elisabeth Sparkle, interpretada por Demi Moore, é o símbolo dessa tragédia moderna: uma ex-estrela do universo televisivo que encontra na promessa de uma substância “milagrosa” a chance da sobrevivência, não apenas profissional, mas existencial. Porém, este renascimento imposto é um pesadelo que questiona a essência da identidade, da autenticidade e do preço brutal cobrado por se mediarmos pela imagem — ampliando um debate caro a Charles Taylor e Paul Ricoeur sobre quem somos quando o “eu ideal” parece estar em guerra com o “eu real”. A transformação que Elisabeth sofre, com suas consequências grotescas e desumanizantes, é um convite à reflexão sobre a biopolítica do corpo, a mercantilização da feminilidade e o sofrimento infligido pelo espetáculo do consumo e descarte.

Uma das camadas mais instigantes do longa é a relação com a comida, que vai muito além do ato de se alimentar. A comida no filme é símbolo e rito — de controle, de revolta, de autoaniquilamento, e também de busca por pertencimento. Elisabeth, que inicialmente se priva, em sintonia com os padrões estéticos, depois se deixa consumir compulsivamente, como que internalizando a lógica cruel da sociedade do consumo de corpos e emoções. Isso ecoa as reflexões de Mary Douglas e Claude Lévi-Strauss na antropologia, para quem a alimentação é espaço de construção social, e a crítica à medicalização da estética ganha um tempero visceral através desse elemento, como uma metáfora perfeita para o ciclo incessante de prazer e repulsa que nos define.

A direção corajosa de Coralie Fargeat abraça o exagero do body horror para, ao mesmo tempo em que escancara o grotesco, denunciar a cultura do “mais é mais” da juventude eterna e do corpo perfeito, um horror que é tanto físico quanto simbólico. Entre esguichos de sangue e texturas quase palpáveis, “A Substância” desafia o espectador a confrontar sua própria cumplicidade — na busca, na admiração, na repulsa — diante de um cinema não só visual, mas sensorial, emocional e filosófico que incomoda e fascina.

A obra pode ser por vezes exaustiva em sua intensidade quase insustentável, mas é essa excentricidade que lhe confere vitalidade e voz. Um grito que sacode nosso falso conforto e nos força a encarar as nossas próprias fissuras. Na interseção entre filosofia da identidade, antropologia da alimentação e sociologia do corpo, “A Substância” é muito mais do que um filme de terror: é um convite dramático e perturbador a pensar o que custa ser humano em um mundo que parece querer nos transformar em versões descartáveis de nós mesmos.

Nota: 9,0 — uma experiência que impacta e provoca, forte e imperdível, com sua dose certa de agonia e beleza absurda.

Manuel Flavio Saiol Pacheco
Manuel Flavio Saiol Pacheco
Doutorando e Sociologia e Direito pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Mestre em Justiça e Segurança pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Especialista em Desenvolvimento Territorial pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).. Possui ainda especializações em Direito Tributário, Direito Constitucional, Direito Administrativo, Docência Jurídica, Docência de Antropologia, Sociologia Política, Ciência Política, Teologia e Cultura e Gestão Pública e Projetos. Graduado em Direito pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Advogado, Presidente da Comissão de Segurança Pública da 14º Subseção da OAB/RJ, Servidor Público.

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