Há um abismo chamado celular. Não é uma fenda escavada por mãos humanas, mas sim uma distância silenciosa que evolui na velocidade com que a tecnologia se insinua em nossas vidas, mudando hábitos, laços e até mesmo o modo como nos enxergamos uns aos outros. Entre gerações, esse abismo pode parecer intransponível, especialmente para quem, como eu, já viveu tantas transformações e agora observa o mundo pelos olhos de um avô saudoso.
Mudanças que o tempo trouxe
O mundo está mudando numa velocidade difícil de acompanhar. O que ontem era brincadeira de rua, de bicicleta, de palavras e de imaginação fértil, hoje parece ter sido engolido pela tela de um celular, pela música que ecoa nos fones de ouvido, pelas conversas em aplicativos que não conheço, com amigas que nunca vi. Recordo com carinho da época em que minha neta era pequena, quando minha presença não competia com nenhum dispositivo eletrônico. O tempo era nosso aliado; cada instante era preenchido por risos, perguntas curiosas e desafios inocentes.
Como avô, tornei-me inventor de brincadeiras e contador de histórias. Ora éramos polícia e ladrão, ora exploradores do alfabeto em busca de animais, ora ciclistas destemidos em calçadas tranquilas. Ensinei-a a pedalar, a equilibrar-se entre o medo e a confiança, e cada conquista era celebrada com abraços e a certeza de que estávamos juntos, aprendendo e crescendo.
O novo cenário
Agora, os tempos são outros. Ela está com quatorze anos; a adolescência trouxe consigo não apenas beleza e inteligência crescentes, mas também uma autonomia digital que, por vezes, me exclui. O celular tornou-se um apêndice inseparável, e as redes sociais, um universo paralelo onde minha presença é apenas periférica. Nossa interatividade resume-se a almoços breves, duas vezes por semana, e aos trajetos de metrô e trem até sua escola, onde, por quarenta minutos, compartilho o mesmo espaço físico, mas raramente o espaço emocional.
Observo sua atenção ser capturada por notificações, mensagens e músicas que desconheço. Às vezes tento iniciar uma conversa, contar uma história, perguntar sobre sua rotina, mas percebo que há sempre uma barreira invisível — o celular, ora nas mãos, ora no bolso, mas sempre ali, pronto para interromper qualquer tentativa de proximidade. Sinto saudades de quando éramos cúmplices, de quando o tempo parecia infinito e a vida era simples.
O impacto das redes sociais no desenvolvimento
Preocupo-me, como muitos da minha geração, com o efeito das redes sociais na formação de jovens. Vejo que, por mais que ela se torne cada vez mais linda e inteligente, existe o risco de que essa dependência de estímulos constantes retarde o desenvolvimento de habilidades fundamentais: a escuta ativa, o diálogo, a paciência, a curiosidade pelo outro. As redes sociais prometem conexão, mas frequentemente entregam isolamento — cada um em sua bolha, cada um com sua “timeline “repleta de imagens filtradas e informações fragmentadas.
O abismo chamado celular não se limita apenas ao tempo que rouba do convívio familiar. Ele cria uma barreira de entendimento: os adolescentes de hoje consomem conteúdos que seus avós não compreendem, desenvolvem linguagens próprias, referências culturais distintas, e constroem identidades digitais que muitas vezes não têm espaço para o passado, para as memórias e valores que tentamos transmitir.
A saudade como força criativa
Sinto saudades da nossa interatividade, saudades que não são apenas uma lamentação, mas também um impulso para buscar novas formas de conexão. A saudade é, em parte, a admissão de que éramos felizes juntos, e é também um convite à criatividade — como reinventar o vínculo? Como encontrar brechas no cotidiano digital para reavivar a alegria de estar presente, de compartilhar experiências que não dependem de likes ou curtidas?
A resposta não é simples, mas é possível. Talvez seja preciso aceitar que o mundo mudou, que minha neta tem direito ao seu espaço, às suas descobertas, ao seu próprio ritmo. Mas também acredito que há espaço para a construção de pontes, mesmo sobre o abismo do celular.
Construindo pontes: ideias para a reconexão
Ao invés de lamentar, procuro enxergar oportunidades. O tempo que ainda compartilhamos, mesmo que breve, pode ser reinventado. Por que não propor pequenas aventuras fora das telas? Que tal convidá-la para cozinhar comigo, experimentar receitas antigas da família, contar histórias sobre os ingredientes e suas origens? E se eu lhe pedir ajuda para entender o universo das redes sociais, pedir que me ensine sobre seus aplicativos preferidos, demonstrar interesse genuíno pela sua rotina digital?
O passeio de metrô e trem, de quarenta minutos, pode ser um espaço para conversas menos formais, para trocas de olhares, conversar sobre o que ela está aprendendo na escola. Posso compartilhar minhas memórias, meus sonhos e meus medos, e, quem sabe, ela compartilhe os seus. O importante é não desistir de tentar não permitir que o silêncio se torne regra, não permitir que o abismo se torne permanente.
Esperança e transformação
Desejo que, com o avanço da idade, minha neta e eu descubramos novos motivos para interagirmos. A vida é feita de ciclos, e acredito que a maturidade trará a ela o desejo de revisitar as raízes, de buscar conselhos, de se reconectar com histórias familiares. Talvez o tempo faça com que o celular seja menos um abismo e mais uma ponte — afinal, a tecnologia pode tanto afastar quanto aproximar, depende do uso que fazemos dela.
Nunca deixarei de admirar sua beleza e inteligência, nunca deixarei de acreditar que nossa relação pode se reinventar. O celular é apenas um objeto; o afeto, este sim, é eterno e resiliente. Torço para que, juntos, possamos superar os desafios da era digital e redescobrir a alegria de estarmos presentes.
Conclusão
O abismo chamado celular é, antes de tudo, um convite à reflexão. Ele nos desafia a repensar o valor do tempo, da presença, do diálogo. Não é uma barreira definitiva, mas sim um obstáculo que pode ser superado com paciência, carinho e criatividade. O mundo muda, as gerações mudam, mas o amor — este permanece, atravessa telas, redes e distâncias. E é nele que deposito minha esperança de reencontro, de reconexão, de continuidade.
Que possamos todos, avós, pais, netos e filhos, aprender a equilibrar o uso da tecnologia com a riqueza da convivência. Que os abismos da modernidade sejam apenas pontos de partida para novas formas de carinho, respeito e amizade. E que, um dia, os celulares sejam apenas ferramentas, e não barreiras, entre corações que desejam estar juntos.