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quinta-feira, 25 de setembro de 2025

A praga revelada por Bolsonaro

Bolsonaro tem muitos erros, mas é impossível negar uma “qualidade” involuntária que ele trouxe à vida pública brasileira: a capacidade de arrancar do esgoto figuras sociais que, até então, muitos acreditavam existir apenas em pesadelos coletivos. Não, elas não eram um delírio. Estavam lá, escondidos, mascarados, alguns até de terno e gravata, outros com a Bíblia debaixo do braço, esperando apenas uma senha, uma faísca, alguém que lhes dissesse: “É permitido”. E Bolsonaro deu permissão. O que antes se recomeçou ao cochicho envergonhado no churrasco de família virou live dominical, marchinha patriótica, corrente interminável de WhatsApp.

Por um certo viés sarcástico, ele nos fez um favor. Não porque enriqueceu o debate público – longe disso –, mas porque desnudou o monstruoso. Mostrou que existe uma legião de pessoas que acreditam piamente que vale qualquer coisa desde que sirvam ao fim da sua tribo. A mentira virou método, a destruição de reputações se tornou no esporte, e até a Bíblia passou por customização, recebendo interpretações sob medida para explicação o injustificável. Chamam de fé o que, no fundo, é apenas um verniz de autoritarismo travestido de santidade. É um falso cristianismo, um cristianismo de plástico, que só serve para alimentar ressentimento e ódio.

Até a chegada dele, muitos acreditaram que tal já não tinha espaço fora dos porões das ditaduras, ou, no máximo, em grupos folclóricos que ninguém levava a sério. A democracia, ingênua, concluiu que esses fantasmas foram superados. Mas bastou Bolsonaro abrir a boca para eles saírem das catacumbas em procissão, orgulhosos de sua intolerância, exibindo como medalhas preconceitos que antes se acanhavam em confessar. A vergonha deu lugar ao orgulho grotesco de dizer barbaridades.

Nesse sentido, Bolsonaro funciona como uma espécie de entomólogo macabro: ele não criou os insetos, mas tirou a tampa do pote e nos mostrou que vivíamos cercados por eles. Escancarou uma infestação. E há um mérito nisso, é o da consciência. Agora sabemos que não há como fingir pureza na paisagem brasileira: há uma parte significativa da população pronta para trocar democracia por ressentimento, verdade por mentira, empatia por retórica autoritária.

É duro, mas necessário, considerar que esse pensamento existe, que não está restrito às caricaturas ou aos extremos folclóricos. São vizinhos, colegas de trabalho, parentes. Gente que sorri socialmente, mas que vibra com a falsificação da Bíblia, com o incidente dos fatos e com o linchamento público da confiança alheia. Gente que imagina que “família” e “patriotismo” se constroem sobre o princípio de que só vale viver quem pensa como eles.

A dimensão da praga, no entanto, vai além. Estamos falando de um ex-presidente que disse a um deputado que ele “não merecia ser estuprado porque era muito feio”, normalizando o machismo como piada de botequim. Um sujeito que declarou que preferia ver um filho morto a ver um filho gay, transformando a homofobia em política de opinião. Que já disse que “quilombolas não servem nem para procriar” e que “pesam arrobas”, perpetuando o racismo mais brutal como se fosse senso comum aceitável. Esse mesmo que se autoproclamava defensor da liberdade de expressão, mas fez questão de silenciar, ridicularizar e perseguir qualquer discordância — seja acadêmica, jornalística ou científica — enquanto vendia a ideia de que liberdade era apenas o direito de causar estragos na vida dos outros.

Durante a pandemia, desfilou sua crueldade sem pudor. Chamou a Covid-19 de “gripezinha” e indagou, diante de milhares de mortos: “E daí? Não sou coveiro”. Quando a população desesperada pedia vacinas, zumbiu: “Se você virar jacaré, o problema é seu”. Cada frase destilava desprezo pela dor alheia, falta de empatia absoluta, como se a vida da população fosse um detalhe inconveniente em seu roteiro político.

Não estamos falando apenas de palavras. Falamos de consequências diretas: pessoas agredidas por discordar, pessoas ameaçadas de usar vermelho em um posto de gasolina, professores perseguidos em sala de aula, famílias atacadas em bares por se oporem. Lembremos da cena brutal: um Guarda Municipal morto em plena festa de aniversário, assassinado por um bolsonarista em apoio ao “mito”, porque ousou pensar diferente. O ódio, legitimado do palanque, transbordou para as ruas.

E vai mais fundo: não bastasse solapar a democracia no presente, Bolsonaro ainda foi capaz de louvar os porões da ditadura de 1964. Sim, aquela que carregava ratos introduzidos em vaginas de mulheres como método de tortura, que obrigava as crianças a assistirem seus pais sendo espancados, queimados, humilhados, para quebrar não apenas corpos, mas almas. Como é possível que seres humanos – que se dizem cristãos, patriotas, pessoas de bem – defendam essa barbárie? Que sentido de moralidade pode existir em casos concretos desses horrores? Onde está a humanidade de quem ovaciona carrascos e trata como “heróis” aqueles que reduziram o Brasil a um cativeiro de dor?

E tudo isso sob a bandeira de um falso patriotismo. Nada mais irônico: em nome da pátria, solaparam o próprio conceito de patriotismo. Defensor da tortura, do extermínio simbólico dos adversários, da ignorância celebrada como virtude, da ciência perseguida como inimiga — tudo isso não exalta o Brasil. Ao contrário, arraste o país para o ridículo internacional, ferindo sua própria soberania. Se existe um patriotismo verdadeiro, ele está justamente no combate a essa torta lógica, e não na sua perpetuação.

Porque, no fundo, para esse grupo, a democracia só existe quando eles estão no comando. Fora isso, é “fraude”, é “inimigo interno”, é “ameaça ao bem da nação”. O jogo só vale se o juiz for deles, se as regras forem deles, se o resultado os favorecer. O resto, para eles, é guerra – e guerra sempre contra o povo.

A questão que fica em aberto é: até onde pode ir esse veneno? Qual é o limite da violência legitimada por esse discurso? Não sabemos. O que sabemos é que não podemos normalizar. Não podemos tratar como “opinião” ou que é ódio organizado, como “fé” ou que é manipulação barata, como “política” ou que é manipulação sistemática de valores civilizatórios. Se há um favor que Bolsonaro nos fez, foi o de arrancar as máscaras dessas pessoas. Mas agora a tarefa é nossa: reforçar essa mentalidade com a seriedade e a firmeza que a democracia exige.

Porque se deixarmos o esgoto correr livre, ele não apenas inunda, mas devora. E o Brasil corre o risco de se afogar na barbárie. Esse é o legado que Bolsonaro nos entregou: a prova viva de que o monstruoso existe. Cabe a nós decidir se o enfrentaremos de frente — ou se o deixarmos destruir o resto do que ainda temos de humano e civilizado.

E se alguém ainda tem dúvida da urgência: basta lembrar que o ódio já matou, já torturou, já perseguiu, já dilacerou crianças diante dos pais e pais diante dos filhos, já transformou a fé em chacota e o patriotismo em ferramenta de manipulação. Basta lembrar que tudo isso retorna a cada vez que a ignorância é aplaudida como virtude. E basta entender, de uma vez por todas, que o contrário de enfrentar é sucumbir.

E sucumbir, neste caso, não é uma opção. Porque se o Brasil tem de escolher entre a sombra da barbárie e a luz imperfeita da democracia, que não se hesita: é na escuridão que moram os monstros. E Bolsonaro nos mostrou que eles existem. Agora, só resta combatê-los — ou aceitamos que, em breve, não sobrará ao país algum para chamar de nosso.

Manuel Flavio Saiol Pacheco
Manuel Flavio Saiol Pacheco
Doutorando e Sociologia e Direito pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Mestre em Justiça e Segurança pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Especialista em Desenvolvimento Territorial pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).. Possui ainda especializações em Direito Tributário, Direito Constitucional, Direito Administrativo, Docência Jurídica, Docência de Antropologia, Sociologia Política, Ciência Política, Teologia e Cultura e Gestão Pública e Projetos. Graduado em Direito pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Advogado, Presidente da Comissão de Segurança Pública da 14º Subseção da OAB/RJ, Servidor Público.

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