*Por Rogério Gomes
O mercado automotivo tem se reinventado diante das transformações tecnológicas e ambientais. A ascensão das startups no setor acompanha essa evolução, representando uma interseção estratégica entre mobilidade, sustentabilidade e digitalização. Investidores de venture capital (VC) têm voltado cada vez mais sua atenção para essas iniciativas, em especial aquelas que desafiam modelos tradicionais de transporte, logística e propriedade de veículos. Mas onde, de fato, está sendo alocado o capital de risco neste segmento?
Nos últimos anos, houve uma mudança clara no perfil dos investimentos: os aportes deixaram de mirar apenas empresas que produzem veículos e passaram a priorizar soluções de software, inteligência embarcada, conectividade, infraestrutura energética e experiências de mobilidade como serviço (MaaS). A chamada “desverticalização da cadeia automotiva” abriu espaço para a entrada de empresas nativas digitais, que operam com modelos de negócios mais enxutos e voltados à recorrência e à eficiência de dados. Esses fatores, somados à urgência de transição energética, criaram um campo fértil para o aporte de capital de risco.
Dados da McKinsey apontam que, entre 2020 e 2023, as startups automotivas globais ligadas à mobilidade elétrica e veículos autônomos foram responsáveis por mais de US$70 bilhões em investimentos. O ano de 2022, mesmo com os primeiros sinais de desaceleração econômica global, foi especialmente expressivo em rodadas voltadas à infraestrutura de carregamento, plataformas de gestão de frotas e tecnologias de sensores. Em 2024, o cenário global de venture capital sofreu retração devido à instabilidade dos mercados e à alta de juros, mas os segmentos automotivo e de energia limpa continuaram entre os que mais concentraram recursos, especialmente no estágio growth.
Essa resiliência se explica pela transformação estrutural que o setor automotivo enfrenta. As pressões regulatórias por redução de emissões de carbono aceleram a demanda por alternativas sustentáveis. Ao mesmo tempo, consumidores passam a enxergar o carro não como um bem de posse, mas como um serviço acessível sob demanda. Essas mudanças afetam toda a lógica de produção, distribuição e relacionamento com o cliente, exigindo soluções inovadoras em mobilidade urbana, seguro digital, manutenção preditiva e integração entre modais.
É nesse ponto que os fundos de venture capital entram como catalisadores de disrupção. Em vez de investir em ativos fixos ou fábricas, os VCs buscam empresas com alto grau de escalabilidade, modelos replicáveis e grande dependência de dados, características hoje presentes, por exemplo, em plataformas de roteirização inteligente, aplicativos que conectam modais ou soluções de pagamento e telemetria veicular. A lógica do investimento está menos ligada ao produto e mais voltada ao ecossistema e à jornada do usuário.
A confluência entre tecnologia e energia abriu um novo nicho de interesse para os investidores. O avanço dos veículos elétricos, híbridos plug-in e soluções baseadas em hidrogênio demanda não apenas inovação no veículo em si, mas também em recarga, armazenamento de energia, reciclagem de baterias e logística de insumos. Startups que atuam nesse perímetro, especialmente no desenvolvimento de software para monitoramento, otimização energética e gestão de infraestrutura, têm atraído um volume crescente de capital, inclusive de fundos voltados à sustentabilidade (climate tech VCs).
Na América Latina, apesar do chamado “inverno do venture capital” em 2023 e 2024, os aportes seguem em níveis historicamente elevados quando comparados a cinco anos atrás. O Brasil, sozinho, respondeu por quase 60% do total investido na região em 2024, com destaque para as verticais de mobilidade, fintech e energia. O movimento de diversificação dos tipos de capital também cresceu: além do venture capital clássico, houve ampliação de veículos como venture debt, corporate venture capital e equity crowdfunding, que vêm suprindo lacunas em rodadas seed e série A, muitas vezes negligenciadas pelos fundos tradicionais.
Outro ponto importante é a atuação das grandes corporações do setor automotivo, que perceberam a necessidade de se aproximar de startups para acelerar sua própria transformação digital. Por meio de fundos dedicados, programas de aceleração ou joint ventures, essas companhias vêm investindo em inovação aberta e parcerias estratégicas. Para os fundos de venture capital, esse movimento é duplamente vantajoso: além de potencializar saídas (exits) via aquisições, aumenta a confiança de outros investidores em mercados ainda em amadurecimento.
Com isso, vemos que a resposta para a pergunta do título é que o capital está fluindo para onde a mobilidade encontra a tecnologia, a energia limpa encontra os dados e o serviço supera a posse. As teses de investimento estão cada vez mais orientadas à transição de um setor industrial tradicional para um ecossistema de soluções interligadas, digitais, inteligentes e sustentáveis. Portanto, não se trata mais de reinventar o carro, mas de reimaginar como nos movemos, e qual infraestrutura viabiliza essa nova lógica de mundo.
*Rogério Gomes é superintendente da AutoBanking, plataforma inovadora de crédito como serviço (CaaS), focada em oferecer soluções financeiras personalizadas para concessionárias de veículos. Executivo sênior com mais de 27 anos de atuação em empresas de médio e grande porte em diferentes segmentos (bancário, financeiro, varejo e tecnologia), Rogério possui participação em projetos de planejamento estratégico, melhorias de processos, reestruturação de áreas/equipes e fusão de empresas.