Ah, a vida moderna, essa tapeçaria bagunçada que a gente tenta costurar com linhas invisíveis. Eu me lembro de Pontes de Miranda, aquele gigante do direito, que em seus tratados sobre o Código Civil já alertava para a delicadeza das relações familiares, onde o afeto não se divide como um bem patrimonial, mas se multiplica ou se quebra de maneiras imprevisíveis. Ele diria, com aquela sabedoria ilibada, que a guarda compartilhada não é só uma sentença judicial, mas um equilíbrio precário entre o dever e o desejo, entre o que a lei impõe e o que o coração anseia. E eu, aqui, no meu cantinho de cronista, observo o dia a dia de um pai comum, desses que não saem nos jornais, mas carregam o mundo nas costas alternadas.
Vamos chamá-lo de João — nome genérico para um drama universal. João é daqueles homens que acordam cedo, preparam o café com leite morno para o filho, e tentam não pensar no calendário colado na geladeira, marcado com caneta vermelha: “Semana minha” ou “Semana dela”. A ex-mulher, vamos chamá-la Ana, mora a três quarteirões dali, num apartamento que cheira a lavanda e rotina organizada. A decisão judicial veio depois de meses de audiências, onde advogados citavam o artigo 1.583 do Código Civil, alterado pela Lei 13.058 de 2014, que prioriza a guarda compartilhada para preservar o vínculo afetivo da criança. Pontes de Miranda aprovaria, eu acho — ele sempre defendeu que o direito de família deve ser guiado pela equidade, não pela rigidez.
Mas a equidade, ah, ela é caprichosa no cotidiano. João pega o filho, Pedro, de sete anos, toda segunda-feira à tarde, na porta da escola. “Papai!”, grita o menino, correndo com a mochila balançando, como se o mundo fosse um playground eterno. No carro, Pedro conta as novidades: “Na casa da mamãe, eu tenho um quarto novo com estrelas no teto!” João sorri, mas sente uma pontada — na sua casa, o quarto é o mesmo de sempre, com pôsteres de super-heróis desbotados e uma cama que range. Ele tenta não competir, mas o coração dividido lateja: será que Pedro prefere as estrelas?
Os mal-entendidos surgem como nuvens num céu limpo. Ana liga às oito da noite: “João, o Pedro disse que você deixou ele jogar videogame até tarde. A gente combinou limites!” João suspira, explicando que foi só meia hora, mas o tom dela é acusador, como se ele fosse o vilão de uma novela. Ele lembra das aulas de Pontes de Miranda sobre obrigações recíprocas — na guarda compartilhada, os pais devem cooperar, mas na prática, é um tango desajeitado, onde um pisa no pé do outro sem querer. João responde: “Desculpa, Ana, vou prestar mais atenção.” Mas no fundo, ele pensa: “E quando você deixa ele comer doce antes do jantar?”
Pedro, ah, Pedro é o sol no centro desse sistema solar bagunçado. Para ele, as duas casas são “dois mundos favoritos”. Na de João, é aventura: pipoca no sofá assistindo filmes antigos, corridas no parque até suar, e histórias inventadas na hora de dormir, onde o pai é o herói que luta contra monstros invisíveis. Na de Ana, é acolhimento: jantares equilibrados, lição de casa feita com paciência, e abraços que duram mais. Pedro não vê divisão; ele vê abundância. “Papai, na casa da mamãe eu tenho um cachorro de pelúcia, mas aqui eu tenho você pra brincar de luta!” Ele reinterpreta o vai e vem como uma viagem mágica, pulando de um planeta para outro, sem notar as fissuras.
Mas João nota. Toda sexta-feira, quando entrega Pedro de volta, sente o coração rachar um pouquinho mais. Ele vê Ana na porta, sorrindo para o filho, e pensa no que Pontes de Miranda diria sobre o afeto indivisível. A lei pode compartilhar a guarda, mas o amor não se divide — ele se multiplica, sim, mas deixa cicatrizes. João volta para casa sozinho, o silêncio ecoando como um eco de risadas ausentes, e se pergunta se um dia Pedro vai entender o quanto custa manter os dois mundos girando.
No fim, a guarda compartilhada é como um ponte entre ilhas — necessária, mas trêmula. João aprende a navegar, dia a dia, mal-entendido a mal-entendido, com o coração dividido, mas inteiro no amor pelo filho. Porque, como diria o sábio Pontes de Miranda, o direito é para proteger, mas o afeto é o que constrói. E Pedro, com seus dois mundos favoritos, é a prova viva disso.