Sorrisos Perdidos no Interior do Brasil
Eu, Dra. Danielle Serejo, cirurgiã-dentista, convido o leitor a uma reflexão sobre um paradoxo doloroso da nossa saúde pública: o país com o maior número de dentistas no mundo convive com comunidades inteiras sem acesso a cuidados odontológicos adequados. Em minhas andanças profissionais pelo interior, testemunhei histórias marcantes, como a de uma paciente que, aos 15 anos, ganhou sua primeira escova de dentes e, pouco depois, teve vários dentes extraídos por falta de atendimento preventivo. Essa realidade, infelizmente, não é exceção. O Brasil lidera em quantidade de dentistas (mais de 441 mil profissionais registrados), cerca de 1 para cada 460 habitantes, mas essa abundância esconde uma distribuição extremamente desigual, em que grandes centros urbanos concentram a maioria dos profissionais enquanto regiões interioranas sofrem com a escassez. Quero, neste artigo, mesclar minha perspectiva pessoal com dados concretos para entender as causas desse desequilíbrio, avaliar políticas existentes e apontar caminhos para devolver o sorriso, e a dignidade, a milhões de brasileiros esquecidos.
Dois Brasis: concentração urbana vs. carência interiorana
É inevitável perguntar: como um país com tantos dentistas pode ter “desertos odontológicos” no interior? A resposta começa pelos números. Cerca de 51% de todos os dentistas do Brasil estão na região Sudeste, particularmente nos estados mais ricos e populosos. Sul e Centro-Oeste apresentam uma quantidade intermediária de profissionais, enquanto Norte e Nordeste padecem com a menor densidade de dentistas por habitante. Em cidades como São Paulo e Rio de Janeiro, há aproximadamente 1 dentista para cada 400 habitantes, ao passo que em áreas remotas essa relação ultrapassa 1 para 1.000 pessoas. Essa disparidade geográfica se traduz em acesso muito desigual: quem vive nos grandes centros tem facilidade em agendar uma consulta de rotina, enquanto quem mora em certas comunidades rurais ou ribeirinhas dificilmente vê um dentista alguma vez por ano, quando vê.
Os indicadores de saúde bucal escancaram as consequências dessa desigualdade. Segundo levantamento do IBGE, mais da metade da população (55%) não vai ao dentista regularmente, e 14 milhões de brasileiros adultos já perderam todos os dentes. Para muitos, o cuidado odontológico chega tarde ou nunca chega: 22% das crianças, 9% dos adultos e 20% dos idosos no Brasil jamais tiveram acesso a um dentista. O resultado é que quatro em cada dez brasileiros acima de 60 anos acabam perdendo todas as dentições, um drama humano e social por trás das estatísticas. A dor de dente crônica, a perda de dentes e a vergonha de sorrir tornaram-se símbolos de um “apartheid bucal” que separa ricos e pobres. No consultório, vejo como a falta de tratamento afeta a nutrição, a autoestima e até as oportunidades de emprego de uma pessoa.
Imagine um jovem adulto do interior, que evitou sorrir a vida inteira por ter dentes em péssimo estado, o impacto psicológico e econômico disso é incalculável.
O próprio Conselho Federal de Odontologia (CFO) já alertava que faltam dentistas no interior em praticamente todos os estados brasileiros, pois embora profissionais não faltem no país, eles se concentram majoritariamente nas capitais. Essa concentração decorre de fatores históricos e estruturais. Cidades grandes oferecem mercado consumidor mais amplo, melhores salários e infraestrutura de clínicas, atraindo os recém-formados. Já a maioria dos municípios pequenos enfrenta o círculo vicioso da falta de estrutura e salários pouco atrativos na rede pública, o que desestimula dentistas a se fixarem nessas localidades. Some-se a isso a dificuldade logística: em áreas amazônicas, por exemplo, há comunidades aonde só se chega de barco, e atuar ali significa enfrentar isolamento e desafios cotidianos. Não surpreende que muitos profissionais optem por não trilhar esse caminho árduo, gerando vazios assistenciais no mapa do Brasil.
Barreiras além dos números: logística, infraestrutura e cultura
As barreiras para a promoção da saúde bucal em áreas remotas vão muito além da simples oferta de vagas para dentistas. A infraestrutura deficiente é um obstáculo primário: há postos de saúde sem equipamentos adequados, sem insumos básicos ou até sem água tratada e energia confiável para o funcionamento de um consultório odontológico. Logística complicada também pesa, levar materiais e manutenção para unidades distantes encarece e dificulta a operação contínua. Em conversas com colegas que atenderam em regiões rurais, é comum ouvir relatos de clínicas improvisadas que não garantem condições mínimas de trabalho, desde falta de raio-X até insumos escassos para restaurações. Nessas condições, o dentista se vê limitado a fazer extrações de urgência, perpetuando o modelo mutilador de décadas atrás, em vez de proporcionar prevenção e reabilitação.
Há, ainda, desafios na formação e perfil profissional. As faculdades de odontologia, em sua maioria concentradas em centros urbanos, formam profissionais tecnicamente capacitados, mas raramente os preparam para a realidade do interior. Poucos egressos se sentem prontos para atuar isoladamente em comunidades pequenas, onde terão de ser verdadeiros “clínicos gerais” versáteis, muitas vezes sem a retaguarda de especialistas por perto. A falta de estágios ou vivências rurais durante a formação contribui para que o recém-formado tenha receio de se afastar dos grandes centros.
Além disso, não podemos ignorar a dimensão cultural e educativa desse problema. Em várias comunidades interioranas, sobretudo as mais vulneráveis, a saúde bucal historicamente não foi priorizada. Falta informação sobre higiene dental e prevenção de doenças, faltam campanhas efetivas e adequadas às realidades locais (inclusive nos idiomas e costumes de populações tradicionais e indígenas). Durante muito tempo, extrair dentes foi visto como algo natural ao envelhecimento, “arrancar o dente que dói” em vez de tratá-lo, e essa mentalidade ainda persiste em certos lugares, fruto de gerações sem acesso a dentistas. Nessas culturas locais, o hábito de visitar o dentista regularmente não se enraizou, seja por falta de serviço disponível, seja por baixa percepção da necessidade até que a dor se torne insuportável. Mudar esse quadro requer educação em saúde contínua e sensível às especificidades de cada comunidade.
A somatória desses fatores, estrutura precária, acesso difícil, formação pouco direcionada e aspectos culturais, cria um contexto em que o dentista do interior enfrenta desafios únicos. Eu mesma, nas ocasiões em que atendi em zonas rurais, senti na pele a diferença: pacientes que viajavam horas para chegar ao posto de saúde, outros desconfiados sobre “receber uma limpeza” porque nunca tinham passado por isso, mães que nunca tinham recebido orientação sobre higiene bucal dos bebês. Essas experiências me mostraram que levar um dentista ao interior não é suficiente; é preciso garantir condições para que ele consiga trabalhar de forma resolutiva e conquistar a confiança da população local.
Políticas públicas: o que funcionou e o que não funcionou
Felizmente, não partimos do zero. Nas últimas duas décadas, o Brasil implementou políticas públicas ambiciosas visando reduzir essas disparidades. A mais emblemática é a Política Nacional de Saúde Bucal, o Brasil Sorridente, lançada em 2004, que integrou de vez a odontologia ao SUS. Lembro vividamente da empolgação naquela época: pela primeira vez, dentistas passaram a integrar as Equipes de Saúde da Família (ESF). Isso significou levar atenção básica odontológica às unidades de saúde da periferia urbana e das zonas rurais, onde antes não havia nenhum atendimento. Os números ilustram esse avanço: em 2003, o Brasil contava com cerca de 6 mil equipes de saúde bucal na Estratégia Saúde da Família; hoje são mais de 30 mil equipes atuando pelo país. Na esfera de especialidades, o Brasil Sorridente viabilizou a criação de Centros de Especialidades Odontológicas (CEO) regionais e Laboratórios de Prótese Dentária (LRPD). Saímos de pouco mais de 100 CEOs antes da política para mais de mil centros especializados atualmente, e de meras dezenas de laboratórios de prótese para cerca de 3 mil em funcionamento. Esses serviços trouxeram tratamentos complexos, como canais, periodontia avançada, próteses e diagnóstico de lesões bucais, para mais perto de regiões onde o SUS antes só oferecia extrações.
Graças a essas iniciativas, houve melhoria concreta em diversos indicadores. A incidência de cárie dentária em crianças, por exemplo, declinou na última década, reflexo da ampliação da prevenção e da fluoretação da água em alguns municípios. Em 2018, estimava-se que as equipes de saúde bucal cobriam cerca de 40% da população brasileira, um patamar ainda aquém do ideal, mas muito superior ao virtual zero de cobertura pública que existia pré-2004. Até 2018, o SUS já contava com aproximadamente 26,7 mil equipes de saúde bucal, comparado a 8,9 mil em 2004, mostrando o salto proporcionado pelo Brasil Sorridente. Na atenção secundária, os CEOs passaram de 674 unidades em 2008 para 1.100 em 2017, ampliando o acesso a serviços antes inalcançáveis pelo interior afora.
Contudo, nem tudo foram flores nesse percurso. A expansão do Brasil Sorridente sofreu altos e baixos conforme mudanças de governo e prioridades. Entre 2015 e 2022, particularmente, vivenciamos estagnação e cortes de investimentos na saúde bucal pública. Estudos mostraram que o financiamento federal para ações de saúde bucal caiu de R$ 829,6 milhões em 2017 para R$ 542,5 milhões em 2018, reflexo de restrições orçamentárias impostas pela Emenda Constitucional 95/2016 (o “teto de gastos”). Na ponta, isso significou municípios com dificuldade de manter equipes e serviços funcionando. Muitos profissionais relataram falta de insumos e atrasos nos repasses, o que desmotivou a permanência em locais distantes. Além disso, mecanismos de avaliação e incentivo foram enfraquecidos, por exemplo, até recentemente o Ministério da Saúde só monitorava se a gestante teve atendimento odontológico, deixando de lado indicadores mais amplos de cobertura populacional. Essa descontinuidade política quase nos fez perder parte das conquistas obtidas.
Mas, com esperança, vejo que estamos numa fase de retomada e fortalecimento das políticas odontológicas. Em 2023, o Brasil Sorridente foi relançado com vigor: a saúde bucal finalmente entrou na Lei Orgânica do SUS, tornando-se uma política de Estado e obrigatória em todos os municípios. Isso representa um marco legal importantíssimo, nenhuma cidade poderá alegar que oferta odontológica é opcional, pois agora é dever de todos os gestores garantir esse serviço básico. Além disso, houve um substancial aumento de recursos federais, triplicando o orçamento da saúde bucal de R$1,5 bilhão em 2022 para R$4,3 bilhões em 2024. Com esse investimento, o Ministério da Saúde conseguiu ampliar em 25% o número de equipes em apenas dois anos, saltando de 29 mil equipes em 2022 para 36,2 mil em 2024. Estabeleceram-se metas ambiciosas de cobertura: atingir 62% da população com assistência odontológica básica e especializada até o fim de 2024, uma expansão sem precedentes, que se bem-sucedida levará serviços a milhões de brasileiros que nunca tiveram atendimento.
Dentro desse esforço renovado, destaco também a criatividade de novas estratégias para alcançar áreas remotas. Um exemplo concreto que presenciei recentemente foi a entrega das Unidades Odontológicas Móveis (UOM), trailers e vans equipados como consultórios, para municípios com dificuldade de acesso. Em agosto de 2025, o governo federal distribuiu 400 clínicas odontológicas móveis, contemplando comunidades rurais, povos indígenas, quilombolas, populações ribeirinhas e periferias urbanas vulneráveis. Essas unidades móveis levarão atendimento a 1,4 milhão de pessoas em 400 municípios, marcando a retomada de uma ação que estava parada havia 10 anos.
Com as UOMs, vi de perto a alegria de comunidades que, pela primeira vez, receberam a visita de um dentista em sua localidade. São caminhões odontológicos completos, com cadeira, raio-X, aparelhos e equipe treinada, capazes de realizar desde limpezas e restaurações até tratamentos de canal e confecção de próteses dentárias no local. E quando um caso requer algo mais complexo, o paciente é encaminhado para um CEO de referência, num circuito de cuidado integrado. A cena do “dentista que vai onde o povo está” me lembrou do potencial transformador dessas políticas: devolver o sorriso a alguém significa devolver cidadania, autoestima e oportunidades, como bem resumiu o ministro da Saúde ao afirmar que cuidar da saúde bucal “é cuidar da vida inteira das pessoas”.
Outro programa digno de menção foi o Programa de Valorização do Profissional da Atenção Básica (PROVAB), implementado no início da década de 2010. Nele, recém-formados (médicos, enfermeiros e dentistas) eram estimulados a atuar por um ano em áreas carentes, recebendo uma bolsa federal e pontuação adicional para futuros concursos de residência. Em 2014, por exemplo, 525 cirurgiões-dentistas foram alocados via PROVAB em mais de 300 municípios com falta desse profissional. A iniciativa teve méritos ao levar temporariamente dentistas jovens a localidades desassistidas, suprindo vazios imediatos. Muitos colegas que participaram relatam que a experiência foi enriquecedora, alguns nunca tinham atendido populações ribeirinhas ou comunidades quilombolas e puderam compreender de perto a realidade dessas pessoas.
Entretanto, programas de caráter temporário como o PROVAB enfrentam a limitação da baixa fixação no longo prazo. Ao término do período de bolsa, a maioria dos profissionais retornou aos seus locais de origem ou buscou centros maiores para especializar-se, pois não havia garantia de carreira fixa no interior. Ou seja, o PROVAB agiu como um “band-aid” necessário em certo momento, mas não resolveu de forma estrutural o problema da permanência. Ele nos ensinou, porém, que incentivos funcionam para atrair profissionais, o desafio é convertê-los em estratégias duradouras.
Caminhos para fixar sorrisos: propostas para o futuro
Diante desse diagnóstico complexo, que soluções podemos adotar para estimular a fixação de cirurgiões-dentistas em áreas vulneráveis? Apoiada em estudos e também na vivência prática, elenco algumas propostas que considero fundamentais:
- Criação de uma carreira de Estado para dentistas no SUS: Assim como já se discute para médicos, estabelecer uma carreira pública nacional para cirurgiões-dentistas pode ser transformador. Isso significaria realizar concursos federais com vinculação direta ao Ministério da Saúde, garantindo estabilidade, progressão e salários atrativos aos profissionais que atuarem no interior. O CFO defende que uma carreira de Estado exclusiva no serviço público permitiria a universalização do atendimento odontológico, nos moldes de magistrados e militares, fixando o profissional na região com um plano de desenvolvimento na carreira. Com remuneração digna e segurança de emprego, muitos dentistas estariam dispostos a se estabelecer em municípios pequenos, construindo vínculo com a comunidade a longo prazo.
- Incentivos financeiros e fiscais direcionados: Além do salário base, é preciso tornar financeiramente viável e atrativo trabalhar no interior. Propostas incluem conceder adicionais salariais por localização de difícil provimento, auxílio-moradia, ajuda de custo para deslocamento e até bônus por desempenho em indicadores de saúde bucal. Incentivos fiscais também podem fazer parte do pacote: por exemplo, isenção ou abatimento de imposto de renda para profissionais de saúde que atuem em áreas remotas, ou programas de perdão parcial de dívidas estudantis (como FIES) para quem cumprir determinado tempo de serviço público em regiões carentes. Essas medidas já foram adotadas com sucesso em outros países para fixar médicos no interior e poderiam ser adequadas à odontologia.
- Melhoria da infraestrutura e condições de trabalho: Não basta levar pessoas; é crucial levar meios para que o dentista possa exercer bem seu ofício. Isso inclui investir na estrutura das Unidades Básicas de Saúde do interior, desde consultórios equipados e em bom estado, até garantia de suprimentos regulares (materiais de restauração, anestésicos, equipamentos de proteção). A expansão das unidades móveis e a manutenção periódica delas também entram aqui, assim como a criação de centrais de apoio teleodontológico. Com a telemedicina ganhando força, dentistas no interior poderiam contar com teleconsultorias e teleducação continuada, recebendo suporte de especialistas à distância para casos complexos e atualizando conhecimentos sem precisar se ausentar da região.
- Apoio à família e integração comunitária: Fixar um profissional não é apenas atraí-lo, mas fazer com que ele queira ficar. Isso envolve olhar para as necessidades pessoais de quem decide viver no interior. Programas de estímulo poderiam oferecer, por exemplo, facilidades para o cônjuge conseguir emprego público na região, prioridade de vagas em escolas para os filhos e acesso a cursos de pós-graduação à distância ou em módulos. Outra frente importante é promover a integração do dentista com a comunidade local, incentivar que ele desenvolva projetos de educação em escolas, campanhas de prevenção nas rádios locais, etc. Quando o profissional se torna parte ativa da vida comunitária, cria-se um laço afetivo que dificulta seu desligamento. Lembro de colegas que foram para municípios distantes e acabaram ficando além do previsto justamente porque se apaixonaram pela comunidade e sentiram ali um propósito maior.
- Valorização do dentista como agente de transformação social: Por fim, é preciso difundir a ideia, inclusive durante a formação universitária, de que atuar no interior não é um “castigo” ou um passo atrás, mas uma oportunidade de enorme impacto social. Programas de residência multiprofissional em saúde da família com ênfase em odontologia comunitária podem preparar jovens dentistas para essa missão. Premiações e reconhecimentos (como o Prêmio Nacional CFO de Saúde Bucal, que destaca municípios exemplares em políticas odontológicas) devem incluir e homenagear os profissionais que fizeram a diferença em áreas vulneráveis. Criar um prestígio em torno do “dentista do interior” ajuda a mudar a cultura da classe, para que mais colegas se sintam orgulhosos e motivados a seguir esse caminho.
Conclusão: um sorriso para todos, uma responsabilidade coletiva
Ao entrelaçar as vivências pessoais com os dados apresentados, fica claro que a ausência de cirurgiões-dentistas no interior não é mero capricho do destino, mas resultado de escolhas políticas, econômicas e sociais que podem, e devem, ser corrigidas. A boa notícia é que já conhecemos muitos dos remédios para esse mal. Programas como o Brasil Sorridente mostraram que é possível levar assistência odontológica aonde antes não chegava, reduzindo índices de cárie e devolvendo a milhões de brasileiros o direito de mastigar sem dor e sorrir sem vergonha. As iniciativas atuais de retomada: incremento de equipes, unidades móveis, financiamento triplicado, são passos na direção certa e merecem ser celebradas. No entanto, a sustentabilidade dessas ações dependerá de um compromisso contínuo da sociedade e do Estado. Não podemos mais permitir retrocessos ou descontinuidades a cada troca de governo.
Como cirurgiã-dentista que já atendeu tanto em consultórios privados de capitais quanto em postos simples do interior, afirmo com convicção: a dor da desigualdade se reflete nos dentes do nosso povo. Nenhum brasileiro deveria precisar pegar estrada ou barco por horas para tratar um abscesso dentário. Nenhuma criança deveria crescer achando normal perder dentes por cárie porque “dentista é coisa da cidade grande”. E nenhum colega profissional deveria ser colocado diante do dilema de trabalhar quase como voluntário pelo bem da sua comunidade ou abandonar sua terra natal em busca de sobrevivência financeira alhures.
O acesso universal à saúde bucal é parte integrante do direito à saúde e à cidadania. Se “a saúde começa pela boca”, conforme o ditado, então garantir dentistas no interior significa cuidar não apenas de sorrisos, mas da saúde integral de milhões de brasileiros. Além disso, como estudos têm demonstrado, a saúde bucal está intimamente ligada à saúde geral: infecções odontológicas mal cuidadas podem agravar diabetes, doenças cardíacas, complicações na gravidez, entre outras condições sistêmicas. Ou seja, quando faltam dentistas, não é só o dente que sofre, é a pessoa por inteiro. Portanto, tratar desse tema é, na verdade, atacar a raiz de muitos problemas de saúde pública em nosso país.
Encerro esta reflexão conclamando a união de esforços. Governos, universidades, conselhos profissionais e sociedade civil precisam trabalhar juntos para que o Brasil deixe de ser “o país dos desdentados” dentro de suas fronteiras, enquanto exporta dentistas para o mundo. Os brasileiros do interior têm o mesmo direito de sorrir que aqueles das capitais. E nós, profissionais e cidadãos, temos o dever de não descansar enquanto houver brasileiros escondendo o sorriso por falta de acesso a algo tão básico quanto uma escova, um dentista, um cuidado. Um país verdadeiramente desenvolvido se mede também pelos sorrisos saudáveis de seu povo, de Norte a Sul, do litoral ao sertão. Essa é a visão e a esperança que me movem, e é por ela que continuarei lutando, com a certeza de que sorrisos perdidos podem e vão ser reencontrados, quando fizermos do acesso à saúde bucal uma realidade para todos.
Referências Bibliográficas:
Conselho Federal de Odontologia – Dados de profissionais ativos (2025). CFO/BI, 2025.
Paiva, J.V. “Quantos dentistas tem no Brasil? Principais números em 2024.” Clinicorp, 13 nov. 2024.
Bleicher, L.; Cangussu, M.C.T. “Evolução das desigualdades na distribuição de dentistas no Brasil.” Ciência & Saúde Coletiva, v.29, n.1, 2024.
Ministério da Saúde – Portal Gov.br Notícias (21/08/2025). “Governo Federal entrega 400 unidades odontológicas móveis…”
Fiocruz/ENSP – “Política Nacional de Saúde Bucal completa 20 anos.” DSS Brasil, 2023.
Neodent (João Piscinini) – Press Release Saúde Bucal (23/08/2022). “Saúde bucal em risco: metade dos brasileiros não vai ao dentista…”
Pinheiro-Machado, R. “A desigualdade no Brasil é medida pelos dentes.” The Intercept Brasil, 13 maio 2019.
CFO – “Dentista para quem precisa.” Notícias CFO, 13 maio 2014.