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segunda-feira, 29 de setembro de 2025

A Europa entre princípios e interesses: o caso de Kaspar Veldkamp

Enquanto as deportações, as confiscações de terras e a violência dos colonos — amparados pelo exército israelense — se intensificam na Cisjordânia, e Gaza sofre destruição em larga escala numa guerra assimétrica cujas principais vítimas são civis palestinos, as capitais europeias têm sido palco de enormes manifestações. Manifestantes erguem bandeiras palestinas e clamam por justiça e liberdade. Esta onda de mobilização reflete uma autêntica expressão de solidariedade com um povo submetido ao bloqueio e à violência sistemática.

No entanto, as políticas oficiais da Europa pintam um quadro bastante distinto. Os apelos ao respeito pelo direito internacional e à interrupção da expansão dos assentamentos coexistem com a intensificação das relações econômicas, tecnológicas e militares com Israel — mesmo durante os bombardeios em Gaza. Esta contradição não é acidental: reflete um sistema político em que o capital, o comércio e a indústria armamentista se sobrepõem às considerações morais e aos direitos humanos. O discurso humanitário, frequentemente elaborado para audiências internas e internacionais, preserva a imagem da Europa como defensora de direitos, enquanto os interesses estratégicos e a dependência em relação aos Estados Unidos ditam a política concreta. A questão palestina expõe, assim, os limites da retórica europeia e a fragilidade de seus valores proclamados diante de interesses estratégicos e econômicos.

A renúncia de Veldkamp: uma contradição política

A renúncia do ministro holandês das Relações Exteriores, Kaspar Veldkamp (Partido Novo Contrato Social), em 22 de agosto de 2025, foi mais do que um acontecimento político interno. Ela evidenciou as contradições da política europeia em relação a Israel. Veldkamp defendeu reiteradamente a aplicação de sanções em resposta à devastação em Gaza, mas enfrentou forte oposição dos partidos de direita VVD e BBB, que priorizaram contratos militares e interesses comerciais.

Sua saída reflete os limites impostos a qualquer dirigente político em um sistema que trata a economia e as alianças estratégicas como pilares da política externa, relegando os direitos humanos a um papel secundário — ou a uma mera ferramenta retórica. A questão moral mais ampla permanece: como podem governos que se autoproclamam defensores dos direitos humanos, ao mesmo tempo, fornecer componentes militares e tecnologia avançada à máquina de guerra israelense?

Mesmo quando proclamam apoio à “paz” e à “solução de dois Estados”, os governos europeus aprofundam suas parcerias comerciais com Israel, inclusive em setores ligados à expansão dos assentamentos e ao fortalecimento militar. A retórica europeia busca projetar neutralidade, mas as realidades econômicas e estratégicas revelam uma parceria efetiva com uma potência ocupante. A renúncia de Veldkamp expôs o fosso entre princípios públicos e decisões moldadas pelo capital e pela indústria armamentista, tomadas a portas fechadas.

A Europa entre a retórica solidária e os interesses estratégicos

A posição da Europa em relação à Palestina equilibra-se entre uma retórica idealista e realidades pragmáticas. Oficialmente, defende o fim dos assentamentos, o respeito ao direito internacional e o apoio à solução de dois Estados. Contudo, a União Europeia continua sendo o maior parceiro comercial de Israel, e os Estados-membros seguem fornecendo componentes militares utilizados nas operações em Gaza.

A memória histórica — o Holocausto — é repetidamente evocada para justificar a imunidade política de Israel, enquanto os palestinos enfrentam bombardeios e cerco. A dependência europeia em matéria de segurança da OTAN e sua subordinação estratégica aos Estados Unidos reduzem ainda mais as opções de política externa.

Existem, entretanto, diferenças entre os Estados-membros: a Eslovênia impôs um embargo total de armas a Israel, enquanto a Noruega retirou investimentos de empresas israelenses ligadas à atividade militar nos territórios ocupados. Estas variações revelam que as decisões europeias estão longe de ser unificadas, e a contradição entre retórica e interesses persiste, apesar das medidas mais rigorosas adotadas por alguns países.

Enquanto isso, a pressão popular cresce. Centenas de milhares de pessoas protestaram em Londres, Paris, Madri, Berlim, Amsterdã e Bruxelas, empunhando bandeiras palestinas e exigindo o fim das exportações de armas e do comércio com Israel. Esta mobilização reflete uma consciência crescente de que o apoio contínuo a Israel contradiz os princípios que a Europa afirma defender.

Contudo, os governos seguem comprometidos em proteger os interesses corporativos, a indústria armamentista e os compromissos estratégicos com os Estados Unidos, relegando a questão palestina a um dossiê secundário, administrado por meio de declarações diplomáticas e promessas adiadas.

Recomendações: alinhar a política com os princípios

A Europa deve interromper a exportação de componentes militares utilizados em Gaza. Qualquer cooperação militar com Israel deve estar estritamente condicionada ao respeito pelo direito internacional, garantindo que as empresas europeias não se tornem parceiras em operações de guerra.

A pressão econômica precisa ir além de gestos simbólicos. Isso inclui suspender acordos comerciais e científicos com Israel e impor uma proibição abrangente sobre os produtos dos assentamentos. Tais medidas demonstrariam a seriedade da Europa e sua recusa em normalizar as políticas de ocupação.

O reconhecimento do Estado da Palestina pelos Estados-membros da UE fortaleceria a causa palestina no cenário internacional e proporcionaria uma base para um processo de paz mais justo.

A Europa também precisa reduzir sua dependência em relação aos Estados Unidos. Uma política externa mais independente permitiria ao continente priorizar a justiça e os direitos humanos em vez do alinhamento militar — condição essencial para recuperar influência moral e política em escala global.

A sociedade civil deve ser integrada à formulação de políticas. O diálogo institucional, a transparência nos acordos comerciais e militares com Israel e a educação pública sobre os impactos em direitos humanos são fundamentais. Fortalecer a sociedade civil com ferramentas jurídicas e políticas garante que as demandas populares se traduzam em políticas concretas e eficazes.

Conclusão

A renúncia de Veldkamp expõe um dilema europeu que vai além de uma crise interna: um continente que proclama defender os direitos humanos, mas cuja política se molda em torno de contratos militares, interesses comerciais e alianças estratégicas. A persistência nesta dualidade ameaça a credibilidade da Europa, colocando-a diante de uma prova difícil — aos olhos de seus povos e perante a história.

A escolha é clara: manter a cumplicidade com a ocupação ou dar passos ousados, coerentes com os valores que a Europa afirma defender. A saída de Veldkamp pode ser a primeira centelha, mas a mudança significativa dependerá da capacidade dos europeus de transformar a indignação popular em poder político, redefinindo a relação da Europa com a Palestina e Israel com base na justiça, e não em interesses estreitos.

Autor:

Dr. Rasem Bisharat – Pesquisador e analista em estudos da Ásia Ocidental e da América Latina

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