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sexta-feira, 26 de setembro de 2025

A Bíblia Sob Medida: Quando a Palavra se Torna Espelho das Ideologias

Vivemos uma época em que até as Escrituras parecem ter sido sequestradas pelo mercado das convicções personalizadas. Criam-se versões da Bíblia que já não convidam à conversão interior, mas à confirmação de preconceitos. É a “Bíblia customizada”, moldada não pelo sopro do Espírito, mas pela estreiteza das ideologias humanas. Uma Palavra divina transformada em vitrine de interesses terrenos.

Pensemos, por exemplo, nas edições que exaltam o direito irrestrito às armas, quando o próprio Cristo ordenava que Pedro guardasse a espada em Gethsêmani: “pois todos os que lançam mão da espada, à espada perecerão” (Mt 26:52). Como conciliar o seguimento de Jesus, que se entregou ao martírio sem resistir, com uma fé que celebra o armamento como emblema de poder e “proteção”?

Ou ainda nas versões em que o preconceito encontra guarida sob interpretações distorcidas, quando a mesma Escritura recorda que em Cristo já não há judeu nem grego, escravo nem livre, homem nem mulher (Gl 3:28). Não se trata de dissolver diferenças, mas de superá-las em dignidade. Ainda assim, proliferam leituras que usam a Bíblia como trincheira contra o outro — justamente o contrário do Evangelho, que dissolvia fronteiras.

Há também uma quase obsessão com ritualismos e formalidades: a frequência ao templo, o dízimo meticulosamente calculado, a indumentária impecável. No entanto, o próprio Cristo acusava os fariseus de limparem o exterior do cálice enquanto o interior permanecia impuro (Mt 23:25–26). A religião do detalhe formal, sem coração transformado, se reduz a um teatro piedoso, vazio de amor verdadeiro.

E não podemos esquecer da célebre máxima: “Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus” (Mt 22:21). Durante séculos, alguns a reduziram ao campo dos impostos, como se fosse apenas uma instrução fiscal do Messias. Mas o alcance é muito mais profundo: Cristo estabelecia uma distinção de esferas, a do poder humano e a do poder divino, lembrando que o Estado não deve absorver o espaço da fé, e a fé tampouco deve se confundir com os interesses imediatos da política. Misturar César e Deus é corromper a ambos: o Estado se torna tirânico quando instrumentaliza a religião, e a religião se torna idólatra quando busca respaldo na força do poder secular. Essa frase de Jesus é, talvez, a semente mais pura de uma noção de laicidade — não a negação do espiritual, mas o reconhecimento de que o Reino de Deus não pode ser reduzido às disputas do palácio e do império.

Outro ponto esquecido — ou convenientemente distorcido — é a forma como muitos fabricam discursos de ódio em nome da fé. Justificam exclusões, estigmatizações e até violências verbais apelando ao “zelo por Deus”. Mas a mesma Escritura adverte que da mesma boca procedem bênção e maldição. Meus irmãos, não pode ser assim (Tg 3:10). Se a língua é comparada a fogo capaz de incendiar uma floresta inteira (Tg 3:6), como aceitar que comunidades inteiras alimentem chamas de ressentimento, em vez de proclamarem palavras que edifiquem e curem? Jesus não disse: “Bem-aventurados os pacificadores, porque serão chamados filhos de Deus” (Mt 5:9)? A lógica do Evangelho não é a do ódio, mas a de uma desarmante mansidão. O discurso que humilha, inferioriza ou demoniza o outro jamais pode ser selado com o nome de Cristo sem grave contradição.

As Escrituras, em seu sentido mais profundo, não foram dadas para legitimar sistemas políticos, costumes de classe ou vaidades pessoais. A Palavra não é roupagem para cobrir nossas sombras, mas espada afiada capaz de revelá-las. Ao instrumentalizá-la, não apenas profanamos o texto sagrado, mas criamos uma caricatura de fé, incapaz de salvar, transformar ou acolher.

Talvez o maior escândalo não seja a Bíblia “customizada” em si, mas o fato de tantos buscarem nela apenas um reflexo de si mesmos. Pois, como disse o Mestre, “se conhece a árvore pelos frutos” (Mt 7:16). E que frutos nascem de uma fé feita sob encomenda? Arrogância, exclusão, violência e frieza.

A verdadeira contradição é essa: enquanto Jesus apontava para a simplicidade do amor como síntese da Lei — amar a Deus e ao próximo (Mt 22:37–39) —, muitos preferem perder-se em edições comentadas, adaptações panfletárias e sensibilidades menores. A Palavra de Deus não precisa ser redesenhada para caber em nossas molduras políticas; é nossa vida que deve ser redesenhada para caber no Reino que ela anuncia.

Manuel Flavio Saiol Pacheco
Manuel Flavio Saiol Pacheco
Doutorando e Sociologia e Direito pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Mestre em Justiça e Segurança pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Especialista em Desenvolvimento Territorial pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).. Possui ainda especializações em Direito Tributário, Direito Constitucional, Direito Administrativo, Docência Jurídica, Docência de Antropologia, Sociologia Política, Ciência Política, Teologia e Cultura e Gestão Pública e Projetos. Graduado em Direito pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Advogado, Presidente da Comissão de Segurança Pública da 14º Subseção da OAB/RJ, Servidor Público.

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