Vivemos uma época em que até as Escrituras parecem ter sido sequestradas pelo mercado das convicções personalizadas. Criam-se versões da Bíblia que já não convidam à conversão interior, mas à confirmação de preconceitos. É a “Bíblia customizada”, moldada não pelo sopro do Espírito, mas pela estreiteza das ideologias humanas. Uma Palavra divina transformada em vitrine de interesses terrenos.
Pensemos, por exemplo, nas edições que exaltam o direito irrestrito às armas, quando o próprio Cristo ordenava que Pedro guardasse a espada em Gethsêmani: “pois todos os que lançam mão da espada, à espada perecerão” (Mt 26:52). Como conciliar o seguimento de Jesus, que se entregou ao martírio sem resistir, com uma fé que celebra o armamento como emblema de poder e “proteção”?
Ou ainda nas versões em que o preconceito encontra guarida sob interpretações distorcidas, quando a mesma Escritura recorda que em Cristo já não há judeu nem grego, escravo nem livre, homem nem mulher (Gl 3:28). Não se trata de dissolver diferenças, mas de superá-las em dignidade. Ainda assim, proliferam leituras que usam a Bíblia como trincheira contra o outro — justamente o contrário do Evangelho, que dissolvia fronteiras.
Há também uma quase obsessão com ritualismos e formalidades: a frequência ao templo, o dízimo meticulosamente calculado, a indumentária impecável. No entanto, o próprio Cristo acusava os fariseus de limparem o exterior do cálice enquanto o interior permanecia impuro (Mt 23:25–26). A religião do detalhe formal, sem coração transformado, se reduz a um teatro piedoso, vazio de amor verdadeiro.
E não podemos esquecer da célebre máxima: “Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus” (Mt 22:21). Durante séculos, alguns a reduziram ao campo dos impostos, como se fosse apenas uma instrução fiscal do Messias. Mas o alcance é muito mais profundo: Cristo estabelecia uma distinção de esferas, a do poder humano e a do poder divino, lembrando que o Estado não deve absorver o espaço da fé, e a fé tampouco deve se confundir com os interesses imediatos da política. Misturar César e Deus é corromper a ambos: o Estado se torna tirânico quando instrumentaliza a religião, e a religião se torna idólatra quando busca respaldo na força do poder secular. Essa frase de Jesus é, talvez, a semente mais pura de uma noção de laicidade — não a negação do espiritual, mas o reconhecimento de que o Reino de Deus não pode ser reduzido às disputas do palácio e do império.
Outro ponto esquecido — ou convenientemente distorcido — é a forma como muitos fabricam discursos de ódio em nome da fé. Justificam exclusões, estigmatizações e até violências verbais apelando ao “zelo por Deus”. Mas a mesma Escritura adverte que da mesma boca procedem bênção e maldição. Meus irmãos, não pode ser assim (Tg 3:10). Se a língua é comparada a fogo capaz de incendiar uma floresta inteira (Tg 3:6), como aceitar que comunidades inteiras alimentem chamas de ressentimento, em vez de proclamarem palavras que edifiquem e curem? Jesus não disse: “Bem-aventurados os pacificadores, porque serão chamados filhos de Deus” (Mt 5:9)? A lógica do Evangelho não é a do ódio, mas a de uma desarmante mansidão. O discurso que humilha, inferioriza ou demoniza o outro jamais pode ser selado com o nome de Cristo sem grave contradição.
As Escrituras, em seu sentido mais profundo, não foram dadas para legitimar sistemas políticos, costumes de classe ou vaidades pessoais. A Palavra não é roupagem para cobrir nossas sombras, mas espada afiada capaz de revelá-las. Ao instrumentalizá-la, não apenas profanamos o texto sagrado, mas criamos uma caricatura de fé, incapaz de salvar, transformar ou acolher.
Talvez o maior escândalo não seja a Bíblia “customizada” em si, mas o fato de tantos buscarem nela apenas um reflexo de si mesmos. Pois, como disse o Mestre, “se conhece a árvore pelos frutos” (Mt 7:16). E que frutos nascem de uma fé feita sob encomenda? Arrogância, exclusão, violência e frieza.
A verdadeira contradição é essa: enquanto Jesus apontava para a simplicidade do amor como síntese da Lei — amar a Deus e ao próximo (Mt 22:37–39) —, muitos preferem perder-se em edições comentadas, adaptações panfletárias e sensibilidades menores. A Palavra de Deus não precisa ser redesenhada para caber em nossas molduras políticas; é nossa vida que deve ser redesenhada para caber no Reino que ela anuncia.