O artigo O Crescimento da Área de Relações Internacionais no Brasil, publicado por Mônica Herz em 2002 na revista Contexto Internacional, oferece uma análise detalhada da evolução da produção acadêmica brasileira no campo das Relações Internacionais (RI) durante a década de 1990. A autora contextualiza o desenvolvimento da disciplina no Brasil em relação ao cenário global, destacando suas especificidades, tendências, lacunas e contribuições. O texto é estruturado em três seções principais: uma introdução sobre a identidade da disciplina de RI, uma análise de sua trajetória global e um exame específico do caso brasileiro, com ênfase nos anos 90. Herz inicia o artigo situando a disciplina de RI em um cenário de transformações globais, marcado pela dissolução de fronteiras institucionais e projetos políticos normativos que outrora definiam o campo.
O objetivo central é mapear a produção acadêmica brasileira em RI na década de 1990, focando em temas como política externa, instituições internacionais, a natureza do sistema internacional e estratégias de defesa. A autora limita sua análise aos trabalhos de especialistas em RI, excluindo contribuições de áreas como economia, direito internacional e estudos militares, exceto quando dialogam diretamente com a disciplina. Herz traça um panorama histórico da disciplina, destacando sua origem no mundo anglo- saxão após a Segunda Guerra Mundial e sua forte influência norte-americana, frequentemente descrita como uma “ciência social norte-americana” (Hoffman, 1977). A autora aponta a predominância de modelos econômicos e preocupações metodológicas nos Estados Unidos, contrastando com a abordagem da Escola Inglesa, que incorpora elementos sociológicos, históricos e filosóficos, centrados no conceito de sociedade internacional (Bull, 1972). Na Europa, contribuições significativas vêm da Alemanha e Escandinávia, com foco em estudos sobre paz e teoria crítica, enquanto na França a ênfase recai sobre história internacional.
A autora identifica os “grandes debates” que moldaram a disciplina, como o embate entre realistas e idealistas no período entre guerras, seguido pelos debates entre
tradicionalistas e behavioristas, Inter paradigmático (pluralistas, estruturalistas e realistas) e pós-positivista nos anos 80 e 90 (Lapid, 1989). Esses debates, aliados à incorporação de conceitos como soberania e anarquia (Ashley, 1988; Milner, 1991), definem a identidade discursiva da RI. Herz também destaca a crescente interdisciplinaridade a partir dos anos 80, com diálogos entre RI, teoria política, sociologia e filosofia, e a ascensão de perspectivas como o construtivismo (Wendt, 1999) e o feminismo (Tickner, 1992). No Brasil, a consolidação da RI como disciplina autônoma é recente, emergindo nos anos 1970 em um contexto de crise da hegemonia norte-americana e multipolaridade. Até então, a produção acadêmica era escassa e fortemente ligada à diplomacia, com foco na história da política externa brasileira e na inserção internacional do país (Fonseca Júnior, 1989). A teoria da dependência, desenvolvida por autores como Cardoso e Faletto (1970), foi a principal contribuição brasileira ao debate internacional, destacando-se na economia política internacional.
Nos anos 90, observa-se um crescimento significativo na produção acadêmica, impulsionado pela criação de programas de pós-graduação, como os da UnB e PUC-Rio, e pela volta de pesquisadores formados no exterior. A Tabela 1 apresentada por Herz revela que a maioria das teses e dissertações no período focou na política externa brasileira (86 de 210 trabalhos), seguida por temas como integração latino-americana e sistema internacional. Apesar do aumento quantitativo, a autora aponta a ausência de uma tradição de pesquisa consolidada e a limitada interação com debates teóricos globais, com exceção de contribuições esparsas que incorporam perspectivas realistas, neo- institucionalistas e da Escola Inglesa (Fonseca Júnior, 1998; Lima, 1994).
A produção brasileira permanece centrada em estudos históricos e descritivos, com ênfase na política externa e nas relações bilaterais, especialmente com os Estados Unidos e a Argentina. Temas como globalização, crise da soberania e transnacionalização começaram a ganhar espaço no final da década, mas o diálogo com paradigmas como o construtivismo ou o pós-modernismo é raro. Subáreas como estudos sobre segurança, organizações internacionais e direitos humanos também são subdesenvolvidas, com algumas exceções notáveis (Viola, 1996; Cançado Trindade, 1990). O artigo de Herz é uma referência fundamental para compreender a evolução da RI no Brasil, oferecendo um diagnóstico preciso das limitações e potencialidades da produção acadêmica. A autora destaca a dependência de influências externas e a falta de um polo ativo de produção teórica, o que reflete a posição periférica do Brasil no sistema acadêmico internacional. Contudo, o texto poderia explorar mais profundamente as razões estruturais para a
ausência de uma tradição de pesquisa, como o financiamento limitado ou a priorização de outras disciplinas nas ciências sociais brasileiras.
A análise de Herz também subestima o potencial de contribuições regionais, como os estudos sobre integração latino-americana, que poderiam dialogar mais intensamente com a literatura internacional. Além disso, a exclusão de áreas como economia e direito internacional, embora justificada, limita a compreensão do impacto interdisciplinar na formação da RI brasileira. O artigo de Mônica Herz é uma análise seminal que contextualiza o desenvolvimento da RI no Brasil, destacando o crescimento na década de 1990, mas também as lacunas em termos de originalidade teórica e integração com debates globais. A obra serve como um convite à reflexão sobre a necessidade de maior investimento em pesquisa e formação de especialistas, bem como de uma participação mais ativa do Brasil no cenário acadêmico internacional.
REFERÊNCIAS
Ashley, Richard. (1988). “Untying the Sovereign State: A Double Reading of the Anarchy Problematique”. Millennium: Journal of International Studies, vol. 17, n. 2.
Bull, Hedley; Pinter, Francis. (1972). “The Theory of International Politics, 1919-
1969”. In: Poter, B. (ed.). The Aberystwyth Papers: International Politics 1919-1969. Oxford: Oxford University Press.
Cardoso, Fernando Henrique; Faletto, Enzo. (1970). Dependência e Desenvolvimento na América Latina. Rio de Janeiro: Zahar.
Cançado Trindade, Antonio Augusto. (1990). Direito das Organizações Internacionais. Brasília: Exxopo.
Fonseca Júnior, Gelson. (1989). “Estudos sobre Política Externa no Brasil: Os Tempos Recentes (1950-1980)”. In: Fonseca Júnior, G.; Carneiro Leão, V. (orgs.). Temas de Política Externa Brasileira. Brasília: Ática.
Fonseca Júnior, Gelson. (1998). A Legitimidade e Outras Questões Internacionais: Poder e Ética entre as Nações. São Paulo: Paz e Terra.
Hoffman, Stanley. (1977). “An American Social Science: International Relations”.
Daedalus, n. 106.
Lapid, Yosef. (1989). “The Third Debate: On the Prospects of International Theory in a Post-Positivist Era”. International Studies Quarterly, vol. 33, n. 33.
Lima, Maria Regina Soares de. (1994). “Ejes analíticos y Conflictos de Paradigmas en la Política Exterior Brasileña”. América Latina Internacional, vol. 1, n. 2.
Milner, Helen. (1991). “The Assumption of Anarchy in International Relations Theory: A Critique”. Review of International Studies, vol. 17, n. 1.
Tickner, Ann. (1992). Gender in International Relations: Feminist Perspectives on Achieving Global Security. New York: Columbia University Press.
Viola, Eduardo. (1996). “A Multidimensionalidade da Globalização, as Novas Forças Sociais Transnacionais e seu Impacto na Política Ambiental no Brasil, 1989-1995”. In: Ferreira, L.; Viola, E. E. Incertezas de Sustentabilidade na Globalização. Campinas: UNICAMP.
Wendt, Alexander. (1999). Social Theory of International Politics. Cambridge: Cambridge University Press.
Autora:
MÔNICA HERZ. Discentes, 2º período Logística