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segunda-feira, 3 de novembro de 2025

Dei carona para um passageiro do além

Um conto macabro de insônia e terror

Naquela noite fatídica, após uma discussão amarga com minha esposa, senti meu mundo estreitar-se entre quatro paredes que já não reconhecia como lar. Tomado por um impulso cego, agarrei as chaves do carro e escapei, guiado apenas pelo desejo de entorpecer a tristeza. Dirigi sem rumo, as ruas vazias espelhando o vazio que crescia em mim. Um copo. Dois copos. Três… Depois perdi a conta, e o tempo se fez opaco, embalado pelo tilintar dos copos e pela névoa do álcool.

Quando o relógio da parede do bar marcou quinze para meia-noite, compreendi que não poderia voltar para casa. O orgulho ferido, o medo do reencontro e o peso do arrependimento empurraram-me a procurar abrigo em qualquer outro lugar que não fosse a minha própria casa. Foi então que uma ideia insana tomou forma: estacionar junto ao muro do cemitério, ali perto da minha residência, lugar onde a vida e a morte dividem apenas um muro de tijolos e segredos. A princípio um lugar seguro. A razão diz; mortos não fazem mal a ninguém.

Assim, encostei o carro bem rente ao muro do cemitério, pelo lado de trás. Fechei os vidros, baixei os bancos e me abandonei ao sono — ou a algo parecido com ele. Não sei quanto tempo dormi. A madrugada parecia suspensa, densa e estranha, quando um balançar súbito do carro me despertou entre o sono e o terror. Confuso, abri os olhos e, sob a tênue luz da rua, vi uma silhueta pálida e disforme encarando-me através do vidro embaçado. O rosto carregava a marca do além: olhos fundos, pele lívida, um sorriso macabro.

Tentei gritar, mas o som morreu na garganta. Tentei dar partida no carro, mas o motor apenas tossiu, recusando-se a cumprir seu papel de salvador. Então, sem que eu compreendesse como, a porta do passageiro se abriu, e a figura entrou, trazendo consigo o frio dos mortos.

Fiquei paralisado. O cheiro de terra úmida, de flores murchas, invadiu o interior do meu carro. O estranho vestia um terno antigo, manchado de terra vermelha. O silêncio foi rompido por uma voz cavernosa:

— Ligue o carro. Vamos dar um passeio.

Trêmulo, obedeci. O motor finalmente funcionou, como se a presença dele fosse a chave que faltava. Seguimos pelas ruas vazias, e eu sentia-me prisioneiro de correntes invisíveis. O morto-vivo se recostou no banco e contemplou as luzes da cidade, como se reconhecesse cada esquina. Seu olhar era ao mesmo tempo melancólico, mas transmitia também um que de felicidade. Sim, ele estava se divertindo. E muito!.

Em determinado momento, ele começou a gargalhar, um riso seco, que ecoava entre os bancos e gelava meu sangue. Com voz de comando, ordenou:

— Dê a volta. E me leve para casa.

— Onde é sua casa? — perguntei, quase num sussurro.

— No lugar onde você estacionou — respondeu ele, com um sorriso que parecia abrir outro abismo.

Obedeci sem discutir. De volta ao cemitério, estacionei no mesmo ponto, o coração batendo tão forte que mal ouvia meus próprios pensamentos.

Antes de sair, ele virou-se para mim, com um olhar faminto:

— Volte aqui mais vezes. O passeio foi muito agradável.

Abriu a porta, saltou agilmente o muro do cemitério e desapareceu entre as sombras e as lápides, como se nunca tivesse existido.

Fiquei alguns instantes imóvel, tentando entender o que acontecera. O medo era tão palpável que doía. Quando finalmente consegui ligar o carro, parti em disparada, repetindo para mim mesmo como um mantra desesperado:

— Nunca mais vou beber… nunca mais.

E toda vez que cruzo aquela rua perto do cemitério, sinto o peso daquele olhar do outro lado do muro. Às vezes, penso ouvir seu riso, ecoando na madrugada, esperando apenas que eu estacione novamente…

Autor:

Jaeder Wiler

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