No Paraná, o trabalho nas unidades prisionais se estabeleceu como uma estratégia central para a ressocialização. Entre 2018 e 2025, conforme dados do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), a quantidade de pessoas privadas de liberdade envolvidas em atividades laborais mais que duplicou, aumentando de 6.150 para mais de 13.000 detentos atuando em 1.025 canteiros sob a administração da Polícia Penal do Paraná (PPPR).
Tendo em vista a população feminina em cárcere, de acordo com o relatório RELIPEN, 2º semestre de 2024, da Secretaria Nacional de Políticas Penais (SENAPPEN), o estado do Paraná contava com 2.378 mulheres presas em celas físicas. Deste total, 754 mulheres estavam em atividade laboral no sistema prisional, o que representa aproximadamente 31,7% da população carcerária feminina do estado inserida em algum tipo de trabalho. Além da remuneração média equivalente a 75 % do salário mínimo e da possibilidade de remição de pena, regulamentada pela Lei de Execução Penal (Lei nº 7.210/1984), a cada três dias de trabalho, a mulher presa tem um dia de pena reduzido. Esses trabalhos contribuem para o desenvolvimento de habilidades profissionais fundamentais para a reintegração no mercado, sobretudo em áreas como alimentação e serviços, que concentram alta demanda por mão de obra feminina.
O Brasil conta com políticas públicas voltadas à ampliação do trabalho prisional, como a Política Nacional de Trabalho no Sistema Prisional (PNAT), instituída pelo Decreto nº 9.450/2018. Essa política define diretrizes para parcerias entre o setor público e a iniciativa privada, criação de oficinas, fomento a atividades produtivas e financiamento por meio de Fundos Rotativos. O objetivo é garantir que pessoas presas tenham acesso à oportunidades reais de trabalho e capacitação. A PNAT se apoia em princípios das Regras de Mandela da ONU, que asseguram o direito ao trabalho digno, à escolha da atividade, à remuneração justa e à qualificação profissional. Já a Portaria Interministerial nº 210/2014 criou a Política Nacional de Atenção às Mulheres em Situação de Privação de Liberdade, reconhecendo a condição específica da mulher presa e a necessidade de ações focadas em gênero dentro do sistema penal.
Na inauguração da unidade da Cadeia Pública Feminina de Londrina, em 2019, foram instituídas 38 vagas de trabalho interno destinadas às internas, principalmente para atividades como serviços gerais, limpeza e faxina.

Foi dentro desse contexto que surgiu o projeto Capacitar para Libertar. A iniciativa começou com cursos de eletricista e construção civil para homens na Penitenciária Estadual de Londrina II, Unidade de Progressão. Mas ganhou um novo rosto quando chegou à Cadeia Pública Feminina de Londrina.
Desde 2021, o projeto conta com o apoio do Senai, Senac, Sebrae e Abrasel, o curso tem um total de 500 horas com tudo o que uma profissional da cozinha precisaria para sair preparada, técnica, psicologicamente e estruturalmente. Além da formação, as detentas ganharam kits de trabalho, suporte jurídico, plano de negócio e até a marca da própria empresa. “Elas saem com uma logo registrada, uniforme personalizado e um plano para se manter longe da cadeia”, afirma Soraya Ursi, gestora da unidade. “Nosso objetivo é não ter nenhuma reincidência.”
Segundo o relatório Reincidência Criminal no Brasil, elaborado pelo Depen em parceria com o Grupo de Avaliação de Políticas Públicas e Econômicas da Universidade Federal de Pernambuco (GAPPE/UFPE), o estado do Paraná apresenta índices elevados de reincidência penal. As taxas variam de 49,6% a 80% dos indivíduos que retornam ao sistema prisional após a saída.
As ações de ressocialização se tornam fundamentais para quebrar o ciclo de reingresso no sistema penal. Com esse objetivo, uma cozinha escola foi construída e inteiramente equipada dentro da unidade. Além da formação, as apenadas receberam um kit básico de trabalho composto por uma batedeira, liquidificador, formas, dolmã (uniforme da área de gastronomia) e material gráfico para apresentação.

No final do curso, as alunas seguem com o apoio do Sebrae na abertura de um CNPJ próprio para microempreendedor individual e também da Abrasel, que auxilia na indicação de vagas em estabelecimentos para aquelas que não quiserem abrir a própria empresa.
Ao sair da unidade com formação técnica, plano de negócio e apoio institucional, essas mulheres se tornam agentes econômicos capazes de gerar renda para a indústria, reduzir a reincidência criminal e, ao mesmo tempo, fortalecer cadeias produtivas locais.
Apesar das diretrizes nacionais, o cenário do trabalho prisional feminino ainda é marcado por um número de vagas inferior à demanda em grande parte das unidades. Muitas internas demonstram interesse em trabalhar, mas enfrentam filas de espera em razão da falta de infraestrutura, da escassez de projetos conveniados ou da limitação de recursos técnicos para viabilizar oficinas e cursos. Em alguns estados, as dificuldades administrativas para firmar parcerias externas também afetam a ampliação das atividades laborais.
A fiscalização sobre a oferta e a qualidade dos cursos e trabalhos dentro da prisão é feita por repartições como o Ministério Público, a Defensoria Pública e o Conselho da Comunidade. Essas instituições acompanham denúncias, verificam se os direitos das internas estão sendo respeitados e cobram das gestões penitenciárias o cumprimento da legislação. Elas também monitoram se os registros de remição de pena estão sendo corretamente contabilizados e se as condições de trabalho e ensino são dignas. Apesar disso, há lacunas na fiscalização contínua, especialmente quando faltam denúncias formais ou quando a unidade opera com número reduzido de fiscais externos.
Cada mulher que passa pelo sistema encontra um caminho próprio e, no caso de Édna Souza, agarrar-se às oportunidades era mais do que estratégia: era sobrevivência. Ao mesmo tempo em que cultivava a imagem de durona, Édna se agarrava a tudo que pudesse oferecer um vislumbre de futuro, mesmo que para algumas isso parecesse fragilidade. Fazia crochê, participava dos projetos, acumulava cursos. “Só um curso é pouco”, dizia.

Por trás dessa busca incessante por atividades e conhecimento, havia uma consciência clara: manter-se ativa era também uma forma de se proteger. Édna sabia disso melhor do que ninguém. Líder de cela, seu nome raramente era dito em voz alta. Para as outras detentas e até para algumas funcionárias, ela era “Pitbull.” O respeito vinha da postura firme, da fala seca, dos olhos que não desviavam. Mas ela sabia que era mais do que isso. Era a única forma que encontrou para se manter inteira ali dentro.

Ela foi presa em 2018 por homicídio. Édna trabalhava fazendo programas quando um dos clientes sugeriu um jogo de dominação. No começo, pareceu apenas um fetiche, algo que ela já tinha ouvido. Mas, em segundos, as mãos dele apertaram o pescoço dela com mais força do que o combinado. O tom de brincadeira desapareceu. Ela tentou se soltar, arranhou, chutou, mas não adiantou. O ar começou a faltar, a visão escurecer. O desespero tomou conta do corpo antes que ela pudesse pensar. Édna sentiu algo próximo, uma arma ao alcance das mãos. Sem raciocinar, apenas puxou o gatilho. O som do disparo ecoou pelo quarto pequeno. Quando percebeu o que havia feito, ele já estava no chão. Morto. “Quando eu vi, já tinha matado.”
A defesa alegou legítima defesa, mas o histórico do local pesou contra ela. A polícia encontrou cocaína no quarto, porções espalhadas sobre a cômoda. O tiro não foi interpretado como uma reação ao ataque, mas como parte de um contexto maior de criminalidade. O fato de estar armada também virou argumento contra ela. A promotoria apontou que, se ela tinha uma arma ao alcance, não poderia ser considerada indefesa. A intenção de matar foi presumida, ainda que o ato tenha sido um reflexo do medo. Veio a condenação. E então, a cadeia.
“Aqui dentro, cada uma constrói uma identidade para sobreviver. Algumas chegam mais frágeis, outras já trazem uma postura de enfrentamento. Mas, independentemente de como entram, todas acabam criando algum tipo de armadura. A forma como encaram a cadeia tem muito a ver com o que viveram antes. Cada uma nasce e é criada de um jeito diferente, e isso se reflete na maneira como lidam com o encarceramento”, pontua a psicóloga da cadeia, Josiane Pajeu.
Quando Édna estava sozinha, longe dos olhares da cela, a armadura pesava. “Eu não consigo me perdoar, mas creio que Deus já me perdoou”, dizia quase como um lembrete para si mesma. A culpa era uma sombra que a acompanhava. “Eu matei alguém, é uma marca que fica para sempre, não consigo apagar isso”, ela dizia com a voz embargada de choro.
É nesse enfrentamento interno, entre a dor e o desejo de recomeçar, que a educação também surge como uma ferramenta potente de reconstrução, por meio das oficinas de leitura, escrita e reflexão que são realizadas dentro da cadeia.
“A literatura tem um poder humanizador. Porque, querendo ou não, a literatura é esse encontro com o outro. Você tem acesso ao olhar do outro, à vida do outro, seja ela uma vida real ou inventada ali naquelas histórias. É como um jogo de alteridade. E é um jogo também que consegue driblar a solidão”, pontua a professora da oficina de escrita, Layse Barnabé, com entusiasmo nas palavras.
As oficinas de leitura oferecidas dentro da unidade não são obrigatórias. Algumas iam por curiosidade, outras porque ouviram dizer que poderia ajudar na remissão de pena. Édna começou assim. Mas logo percebeu que estar ali não era apenas um jeito de descontar dias da sentença, era um jeito de resgatar uma parte dela que havia sido deixada para trás. “A leitura me ajuda porque é um meio que eu consigo fugir daqui de dentro, de não me sentir presa. Eu posso estar na minha casa, posso estar em qualquer outro mundo, menos aqui dentro. É o que faz os meus dias serem muito mais leves, muito melhores”, completa Édna.
Os livros chegam por diferentes caminhos. Alguns são trazidos pela professora, outros vêm da pequena coletânea disponível na unidade, e há também aqueles doados por pastorais e visitantes. Nas oficinas, as leituras propostas são discutidas em grupo. Algumas se reconhecem nas personagens, outras veem nelas um contraste com a própria história. Há quem diga que os livros ajudam a organizar os pensamentos, quem os use para escapar, e quem, pela primeira vez, se permita imaginar um futuro diferente. As histórias funcionam como espelhos e janelas. Permitem que se enxerguem, mas também que vejam além, possibilidades que, por muito tempo, pareceram inalcançáveis.
Dessa oficina nasceu Uma Vontade Enorme de Gritar, um livro de poesias escritas pelas detentas da unidade. Os versos falam de saudade, arrependimento, raiva, desejo de recomeço. São relatos curtos, em que o peso da experiência vivida se traduz em palavras diretas, sem rodeios.

“644 dias na bolha dias monótonos. Sei como começa e como termina. Olho para um lado e vejo tristeza. Olho para outro, revolta. Eu sempre em paz. Acredito no poder do amanhã.” — D.F., trecho retirado do ebook Uma Vontade Enorme de Gritar.
A oficina de escrita não é apenas um espaço de aprendizado, é um espaço de reconstrução. Durante as aulas, as presas não são reduzidas aos crimes que cometeram, nem às penas que cumprem. São autoras, pensadoras, mulheres que, muitas vezes pela primeira vez, veem sua voz ganhar forma no papel. “Meu objetivo não é ensinar. O objetivo é criar espaço para que elas criem e se apropriem das palavras. A poesia não é um luxo”, afirma Layse.
As palavras, que antes pareciam distantes, agora pareciam possíveis. Do lado de fora, Édna nunca se imaginou em uma sala de aula. Do lado de dentro, começou a entender que talvez o tempo pudesse ser contado de outra forma.
“Antes da oficina, eu achava que eu ia sair daqui e ia fazer tudo errado de novo. Já estava decidida, que era isso mesmo. E daí agora eu estou até achando que eu sou inteligente, que talvez eu consiga fazer uma coisa diferente.”
A Cadeia Pública Feminina de Londrina conta com uma estrutura educacional mantida pelo Centro Estadual de Educação Básica de Jovens e Adultos (CEEBJA), que oferece alfabetização, ensino fundamental e médio às internas. Professores e pedagogos atuam nos programas de leitura e preparação para exames externos. O trabalho é reforçado por parcerias com universidades, conselhos da comunidade e a Polícia Penal, que viabilizam inscrições e provas dentro da própria prisão.
Nos últimos anos, a Cadeia registrou um crescimento na participação de internas em exames de acesso ao ensino superior. Somente em 2024, 460 custodiados da região de Londrina se inscreveram na primeira fase do vestibular da UEL, um aumento de 55% em relação a 2023. Três internas da unidade estão entre os 52 custodiados da região que conquistaram vagas no ensino superior.
A unidade abriga 270 mulheres em privação de liberdade e é um retrato dos contrastes do sistema prisional. Entre a rigidez das celas e as estatísticas do encarceramento, existem trajetórias individuais que desafiam a frieza dos números. A cadeia é um espaço de limites rígidos, onde a privação da liberdade se mistura às histórias de vida marcadas por desafios, erros e tentativas de recomeço. Inaugurada em 2020, no local onde antes funcionava um presídio masculino, a unidade de Londrina abriga mulheres em situação de encarceramento, oferecendo algumas oportunidades de estudo e trabalho, mas também revelando as duras condições e estigmas do sistema prisional brasileiro.

O sucesso do Capacitar para Libertar abriu caminho para a consolidação de outras ações de qualificação dentro das unidades prisionais de Londrina. A expectativa dos gestores é que, com mais investimentos, seja possível ampliar a oferta de cursos, integrar novas tecnologias e fortalecer a rede de apoio para a reinserção social das egressas.
Um dos destaques mais recentes foi o curso de auxiliar de cozinha, no qual as alunas puderam aplicar os conhecimentos adquiridos ao final da formação, elaborando um menu especial composto por sopa de cebola, creme de milho com frango, caldo de cabotiá, caldo de mandioca, caldo de feijoada e caldo verde. Para a sobremesa, foram servidos mousse de maracujá, copo da felicidade e pudim.
Além disso, a Polícia Penal do Paraná (PPPR) concluiu uma turma com 12 apenadas no curso de produção de doces, realizado em parceria com o Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (Senac), e já iniciou uma nova turma com 15 custodiadas na Cadeia Pública Feminina de Londrina.
Outra frente de atuação ocorre por meio de convênio entre a Polícia Penal e a Universidade Estadual de Londrina (UEL), no qual 16 pessoas monitoradas por tornozeleira eletrônica atuam diariamente na manutenção das áreas verdes do campus universitário, realizando serviços como poda, plantio e cuidado de canteiros.
No campo educacional, o projeto de Remição pela Leitura, intitulado “Ler Para Libertar”, também avança. Em junho, o Complexo Social de Londrina recebeu uma doação significativa de 384 livros da UEL, ampliando o acervo disponível para as internas e fortalecendo as oficinas de leitura e reflexão realizadas na unidade.
Todos esses esforços têm gerado impactos mensuráveis. A Polícia Penal do Paraná alcançou um marco histórico em 2025 com o número de custodiados inscritos no Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos para Pessoas Privadas de Liberdade (Encceja PPL). Foram 12.551 inscrições em unidades prisionais do Estado, um crescimento de 10,39% em relação ao ano anterior, superando a meta estabelecida pela Divisão de Educação e Capacitação da PPPR.
O cruzamento entre trabalho e educação dentro das unidades prisionais não representa apenas uma estratégia de ocupação, mas sim um caminho real de reconstrução.
Este trabalho foi realizado com todas as devidas autorizações legais e institucionais, respeitando as normas estabelecidas pelo Departamento Penitenciário Nacional (Depen) e pela Polícia Penal do Paraná (PPPR). O nome citado na reportagem é fictício, utilizado apenas para fins ilustrativos, de modo a preservar a identidade das pessoas envolvidas. A reportagem se compromete integralmente com o sigilo e o respeito à privacidade das detentas, não divulgando quaisquer informações pessoais ou que permitam a identificação das internas retratadas.
Por
Valentina Sieplin Araújo – MTB:13482/PR