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sábado, 2 de agosto de 2025

A guerra das laranjas

Conta-se, entre sussurros carregados de polpa e nuances de aroma adocicado no ar, que numa época suspensa entre o ontem e o quase hoje, ergueu-se no trono um imperador cujo nome se perdeu ao vento, mas cujo temor pairava sobre todos os cantos do seu vasto e intrincado domínio. Não era um imperador qualquer. Dizem que suas botas de couro eram feitas do silêncio de seus adversários e que seu manto refletia o brilho de moedas polidas pela ansiedade dos súditos.

A sua primeira ação, como se moldando um novo mundo ao seu bel-prazer, foi mirar com desdém os estrangeiros que habitavam sua terra. Numa única proclamação, expulsou todos os imigrantes, mesmo sabendo que eram eles que sustentavam as engrenagens mais humildes, mas essenciais, do seu império. As ruas ficaram vazias de vozes diferentes, as plantações sentiram a ausência das mãos que colhiam o que alimentava os mercados, e as fábricas ecoavam um silêncio metálico.

Mas o imperador, convicto de sua razão, girou o globo terrestre colocado sobre sua mesa de nogueira. E, ao fazê-lo, sentiu-se dono não só do seu reino, mas de todas as fronteiras que seus olhos podiam alcançar. Impôs tarifas – pesadas, injustas, quase insuportáveis – aos países vizinhos, aos parceiros e até mesmo aos aliados de longas datas. Não fez concessões, não escutou apelos, não aceitou conselhos. O verbo “ceder” foi banido do vocabulário palaciano.

Nas negociações internacionais, sentava-se no centro da mesa, ladeado por generais imponentes e ministros de olhar gélido. Seu argumento era simples, e sempre o mesmo: “Se não quiserem as minhas condições, encontrarão os portões de minha nação fechados, e os exércitos em prontidão.” Acreditava que seu poderio militar e a pujança econômica davam-lhe o direito de transformar todas as nações em vassalos – não só economicamente, mas ideologicamente. Quem não pensasse como ele, sentiria no bolso o peso das tarifas, e, pior, a mão invisível que interferia nas leis e costumes dos países menores.

Foi assim que chegou ao reino das laranjas. Um pequeno e antigo aliado, responsável por fornecer as melhores laranjas do mundo. Laranjas que, dizem, continham em si o sol do meio-dia e a doçura do orvalho da madrugada. Nesse reino cítrico, um cidadão, do tipo inquieto, tentara um golpe de estado, mas a democracia local, protegida por instituições sólidas e vigilantes, reagira rápido: abriu um processo contra o conspirador e seus cúmplices, e, à época da chegada do ultimato imperial, a condenação era apenas uma questão de tempo.

Amigo do réu e nunca perdendo a oportunidade de testar os limites do seu poder, o imperador exigiu ao judiciário do reino das laranjas: anulassem imediatamente o processo, ou seriam punidos com a proibição de exportar suas laranjas para o grande império. O recado foi enviado em caixas de madeira entalhadas, junto de um exemplar dourado de seu próprio código legal.

O que o imperador não percebeu, no entanto, é que seu povo era completamente dependente das laranjas daquele reino. Nenhuma outra fruta conseguia adoçar o chá matinal dos súditos, nenhum outro sabor conseguia alegrar o paladar dos nobres no banquete real. As ruas da capital fervilharam em protestos, não apenas pela falta do suco, mas pela intromissão do imperador em questões que transcendiam as fronteiras do paladar: “Deixem as laranjas em paz!”, gritavam multidões com cartazes ilustrados por laranjas sorridentes.

O caos cítrico espalhou-se depressa. As crianças choravam diante das bancas vazias, os donos de cafés fechavam as portas por falta do principal ingrediente, e até as aves migratórias mudaram sua rota, sentindo no ar o amargor de uma terra sem laranja.

O imperador, que era ao mesmo tempo temido e, surpreendentemente, inteligente, logo percebeu o erro de cálculo. O trono começou a tremer; os conselheiros passaram a sussurrar aos seus ouvidos não apenas sobre estratégia militar, mas sobre a grande importância do suco de laranja fresco. A insatisfação pulava de boca em boca, e o medo de uma revolta cítrica se avolumava como nuvens carregadas prestes a desabar.

Foi quando, em reunião extraordinária do conselho imperial, um velho conselheiro, de barbas tingidas pelo tempo e olhos cheios de histórias, ergueu a voz: “Majestade, um império pode sobreviver sem ouro, mas jamais sem laranja.” O imperador, entre um suspiro e outro, sentiu o peso de sua coroa. Recuou. Emitiu um novo decreto: reduziu drasticamente a tarifa de importação de laranja e retirou a exigência de interferência no judiciário alheio.

O povo, entre surpreso e aliviado, voltou a sorrir. As ruas encheram-se novamente do aroma doce das laranjas frescas, e até os pássaros, atraídos pelo cheiro, regressaram em revoada. O imperador, sentindo-se mais próximo de seus súditos, ganhou simpatia e, por algum tempo, governou com o respeito que só os líderes capazes de reconhecer seus próprios limites conseguem conquistar.

Dizem que, desde então, toda laranja traz em si não apenas a doçura da terra, mas também a lembrança de que até os mais poderosos devem respeitar as pequenas coisas que sustentam um reino. E que, no fim das contas, a guerra das laranjas não teve vencedores nem vencidos – apenas um povo que aprendeu a valorizar o sabor simples da liberdade.

E assim, nas praças daquele reino e nas mesas do império, celebra-se todos os anos a Festa da Laranja: um lembrete vivo e perfumado de que, acima de tronos e tarifas, está a vontade dos que sonham, riem e compartilham o suco fresco da vida.

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