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sábado, 3 de maio de 2025

Enquanto os outros dormem

Uma crônica em terceira pessoa

Após um dia exaustivo de trabalho, tudo nela pedia silêncio. Enfrentou o trânsito, um de seus últimos obstáculos antes de chegar em seu almejado refúgio: sua casa. Estacionou. Retirou apenas o essencial de dentro do carro. Não havia mais energia sequer para lavar o cabelo, muito menos para cozinhar. Queria ficar invisível por algumas horas. Abriu o aplicativo de delivery antes mesmo de tirar os sapatos.

Enquanto se decidia entre um yakissoba ou hamburguer, a campainha tocou. Era uma criança. Tinha sete anos – a mesma idade de sua filha, que brincava no quarto com os pés aquecidos, à espera de um jantar que, sem sombra de dúvidas, logo chegaria.

Ao contrário da filha, o menino à porta estava malvestido: chinelos gastos, corpo sujo, olhos esbugalhados. Pediu alimento. A noite já havia se instalado, e ainda assim, havia uma criança pedindo comida. Reparou, à distância, a presença de um adulto na calçada, observando. A criança não estava sozinha, mas evidentemente estava desprotegida.

O que fazer? Ligar para o conselho tutelar? Seu impulso inicial foi logo suprimido pela suposição de que aquele gesto tomaria tempo e, no fim, não resultaria em nada. O que poderiam fazer, afinal, naquela hora da noite? O que eles costumam fazer?

A cabeça fervilhou. Pensou em sua própria filha, dentro de casa, abastecida de amor e alimento. Teve pena daquela criança e quis tomá-la para si. Apesar disso, fez o que era mais cômodo naquelas circunstâncias: esquentou uma refeição do dia anterior que estava guardada na geladeira, entregou-a à criança e disse: “Que Deus te proteja”. Assim, junto com o alimento, entregou também a Deus toda a responsabilidade sobre aquela vida.

Após esse encontro, refletiu por algum tempo sobre a origem daquelas pessoas, sobre o possível trajeto que teriam percorrido até chegar ao seu portão, sobre como seria o cotidiano daquela criança junto ao adulto que a empurrava à mendicância. Pensou, inclusive, sobre como teria sido a infância do próprio adulto ao fundo.

Apesar da reflexão momentânea, o sono veio fácil.

No dia seguinte, sua atenção já se voltava completamente às obrigações cotidianas, e pouco se lembrava do menino à sua porta na noite anterior. A memória daquele dia permaneceu oculta durante longo período de tempo até que, certa madrugada, lhe atacou de súbito: O que teria acontecido com aquela criança? Ainda estaria na rua?

Ainda estaria viva?

Como é fácil se esquecer. Como é fácil se fechar em sua própria concha e ignorar toda a realidade ao redor. Perceber (e admitir) isso a fez sentir vergonha. “Que vida irrelevante, essa de viver apenas em prol de si mesmo”, disse.

Por outro lado, pensava: “que exaustão é essa de carregar nas costas os problemas dos outros?“. Sabia, por experiência própria, que a vida de caridade era um trabalho sem fim. Afinal, há tantos problemas no mundo a serem resolvidos. Essa confrontação de pensamentos lhe impôs indagar: “qual é, afinal, a minha responsabilidade? Não seria essa uma função do Estado? Não pagamos impostos para que o básico seja garantido?“.

Lembrou dos debates rasos que têm permeado o espectro político, desfocando o objetivo primordial da Administração Pública, que, segundo a doutrina utilitarista de

Jeremy Bentham, consiste em garantir o máximo de bem ao máximo de pessoas. “Os representantes do povo devem estar muito ocupados”, ironizou.

Queria ser alguém melhor.

Tinha consciência das mazelas do mundo. Assim como Saramago, possuía ela própria um coração feito de sangue, que doía diante das injustiças. Todavia, esse excesso de sensibilidade era, ao mesmo tempo, sua bênção e maldição, à medida em que sentia profundamente e agia pouco.

Faltava-lhe senso prático.

No ano anterior havia feito um propósito de não mais consumir notícias sobre os atentados em Gaza. Ver todo aquele sofrimento lhe corroía o espírito. Não se contentava em apenas enviar doações, queria fazer mais. Mas fazer o quê? Não sabia e, portanto, não fez. Indignou-se ao presenciar em seu reduto clara apologia à ideais extremistas que, de tempos em tempos, saem do bueiro da história para nos aterrorizar. Tentava argumentar, perdia o fio, desistia. Teve, incontáveis vezes, a sensação que gritava dentro de um aquário.

Que contrassenso: sonhava em mudar o mundo, porém não conseguia encarar telejornal.

Essas reflexões solitárias se estenderam por quase toda a madrugada. Em determinado momento, ao registrar o pensamento que lhe ocorria, pensou em Jesus. Há tempos já não se considerava uma pessoa religiosa, mas isso não significava que o tivesse esquecido. O que Ele diria de tudo isso? O que pensaria daqueles que O utilizam como escudo para propagar ódio, exclusão, violência? Havia contradições tão evidentes que pareciam produto de um transe coletivo. Não sabia como combatê-las, mas ainda se orgulhava de, ao menos, percebê-las.

Fechou o caderno. Cessou a anotação.

Amanhã o dia nascerá igual. Coará o próprio café, alimentará os gatos e retomará sua rotina. Nada mudará, a não ser por aquela pontada persistente de inconformidade, que insiste em reaparecer vez ou outra, a fazendo pensar que a vida lhe preparou para algo maior do que a mera repetição de afazeres cotidianos.

No fundo, ela ainda acredita ser possível transformar o mundo, mesmo que apenas uma parte pequena dele, justamente porque, apesar das suas fraquezas, ainda almeja ser mais do que alguém centrado em sua própria existência. Talvez o que lhe falte seja a companhia de outras pessoas com o mesmo propósito de vida.

O mundo há de nos unir”.

Pensou nisso. Voltou a dormir.

Autora:

Karina Magalhães. Uma leitora que sentiu a necessidade de escrever para organizar pensamentos e guardar ideias. Como disse Saramago, todos temos necessidade de deixar algo feito.

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