Dia desses, avistei uma quermesse no centro da cidade. Decidi que seria uma boa oportunidade vender algo, pois carecia dentro de mim muitas coisas das quais não sei listar. A quermesse vivia sempre cheia, com diversas estátuas à venda, quase todas eram a mesma. Davi, de Michelangelo. Uma beleza imponente com uma racionalidade vazia no olhar. Uma moeda de troca, usada pelo prazer.
Eu não tinha um Davi. Na verdade, não tinha nem ao menos o mármore para competir nessa feira esquisita. Foi aí então que tive uma ideia. “Não tenho mármore, mas tenho carne, tenra e maleável. Não tenho razão, mas tenho amor, imprevisível e devoto. Afinal, sou regido por Vênus”.
Coloquei meu amor à venda, e era lindo. A própria Afrodite, de Boticelli, em carne e osso, e amor, claro. Obstinada, linda, misteriosa, com um semblante convidativo, mas melancólico. Não precisava de muito para descobrir o que havia por trás de toda beleza. Bastava o toque
Atraí fregueses e assim, uma grande fila foi formada para testemunhar o produto do meu amor. Afrodite era possessiva e orgulhosa, então eu também era. Ela também era carente e sensível…então eu também era. Então, fomos pegos de surpresa, pois tínhamos a expectativa que tratariam nosso amor como iguaria. Como fui ingênuo, procurei amor numa quermesse.
Em seguida, uma tragédia aconteceu. A cada freguês que se afastava de Afrodite (em busca de outro amor, com a intenção de destruí-lo), ela se entristecia, pois era dependente de amor, afinal, ela era o próprio amor personificado. Ela era o meu amor, minha carne, e estava sendo abusada.
Carne é frágil e, diferente do mármore, sangra. Então, movidos por um desejo carnal e enfurecido. Os fregueses caíram em cima da minha musa! Ai, que dor!
Se batiam nela, eu sentia. Se cortavam ela, eu sangrava. Percebi que os Davis estavam todos caídos, ainda assim intactos. Eram feitos de isopor mas pareciam de mármore. Afrodite era a única obra “genuína”, e os fregueses
estavam cansados do amor superficial que os Davis davam. Eles dilaceraram a carne da pureza até o osso ser exposto. Mas quando percebiam que não havia superficialidade nenhuma em carne, osso e sangue, fugiam. Os fregueses, meu Deus, eram homens. Meu Deus, eram monstros.
Fugiram, covardes, todos foram embora sem ao menos limpar a cena do crime. Minha musa estava no chão, destruída. Da poça de sangue, que antes era Afrodite, boiava um coração feito de ouro, aguardando para ser limpo.
Carne, enquanto viva, se regenera. Quando me curar, irei criar outra obra para um público que não a destrua, e sim torne-se devoto dela. Depois da quermesse, fui para a igreja e senti o amor de Deus. Amor de artista não é compreendido de forma mundana, e sim divina.
Autor:
Helder Vasconcelos