Recentemente estive lendo os três volumes de memórias do grande General Juarez Távora, Vice-Rei do Norte, um dos personagens de proa, dos mais importantes da Revolução de 1930. Sem o seu concurso revolucionário na sublevação de várias unidades militares no Norte e Nordeste do país, no momento decisivo, ou sem a incursão que fizera no movimento tenentista conhecido por “Coluna Prestes”, desde os seus primórdios, organizando as tropas sublevadas em inconformidade com o estado de coisas da República Velha, o presidente Getúlio Vargas jamais teria sido capaz de conquistar o poder e dar início ao tempo mais profícuo de transformação e desenvolvimento nacionais de que temos notícia em toda a nossa história, com repercussões profundas em todas as esferas da vida brasileira e que permanecem entre nós até hoje, quase um século depois.
Suas memórias conformam uma espécie de autobiografia não só do cidadão exemplar, ícone da nacionalidade, e de um período histórico inteiro, mas também do desenvolvimento das ideias políticas entre nós brasileiros. Quem repassa estas páginas da história pátria poderá observar por que caminhos tortuosos e árduos toda uma geração de idealistas, que acreditou total e fielmente na capacidade de, através de uma Revolução imposta pela força das armas, ser capaz de instituir entre nós uma Verdadeira Democracia, que permitisse afinal a justa e cristalina representação dos interesses das grandes maiorias nacionais e a proteção dos direitos fundamentais, estabelecendo um ambiente de ordem e de progresso liderado pela consciência cívica e patriótica, ascendeu ao poder, consumiu-se e terminou por se decepcionar, por diferentes motivos.
Esta democracia ideal, imaginavam estes grandes antepassados nossos, não poderia prescindir não só de instituições políticas e jurídicas isentas e limpas, mas também de ampla educação pública, eficiente, universal e gratuita, além de uma imprensa verdadeira, capazes de esclarecer os espíritos na hora de proceder à suprema escolha dos seus representantes, tendo absoluta clareza não só dos seus maiores interesses, mas dos meios mais plausíveis para alcançá-los – a que estaria informada, periodicamente, por técnicos permanentes da estrutura burocrática governamental, apartidários, compostos da melhor intelectualidade brasileira, cuja única função seria estudar os problemas brasileiros apontando suas causas e os caminhos mais viáveis para a sua superação, no esquema imaginado pelos bravos tenentes de então. E não poderia prescindir, obviamente, de atenta vigilância das nossas Forças Armadas, elevadas à condição de Sentinela capaz de garantir esta substituição de rumos políticos, no momento da traição às instituições estabelecidas e à Vontade da maioria da população que elegera seus representantes para perseguir interesses declarados, notadamente o desenvolvimento econômico nacional, com a consequente melhora no padrão de vida e de trabalho. O consenso de todos em 1930 era que o modelo de representação em vigor no país, herança do pensamento liberal ocidental, estava apodrecido e incapaz de servir como meio eficaz para o alcance daquelas finalidades. Uns queriam progressos liberais que já avançavam no Ocidente rico, outros, criar modelos inovadores, aclimatados, sem o molde dos centros imperiais.
Pois bem, por isso se bateram os melhores espíritos do tempo que está bem pouco atrás de nós, em batalhas sangrentas e fratricidas, desde 1922 até 1985. E, durante todo este tempo de lutas, uma geração inteira transitou, por diferentes caminhos, desta fé extremada na capacidade de resolver o problema democrático através da modelagem de instituições perfeitas, à descrença completa na capacidade das massas autogovernarem-se e elegerem representantes dignos da grande tarefa, seja por injunções relativas à natureza humana, incorrigíveis pela educação, senão excepcionalmente em uma minoria de excepcionais, seja por aquelas relativas à conformação material do estado de coisas que impede a ação estatal redentora em todas as frentes, por insuficiência de poder (argumento tornado ainda mais grave a partir da década de 1990, com o fenômeno da globalização exponenciando a cruel influência estrangeira, exercida com mais força do que nunca sobre a mentalidade dos nacionais pelos canais de comunicação que o dinheiro e só o dinheiro é capaz de impor à nossa audiência e conduzir assim os nossos espíritos e a nossa vontade).
Relembrar esta história é necessário para abordar o novo fenômeno político que está novamente estremecendo a crença no mecanismo liberal de representação, vitorioso novamente em 1988, como o fora em 1945 – fenômeno que sequer é tão novo assim, sendo bastante semelhante à ascensão pelo voto de Jânio Quadros, de Collor, de Lula e de Bolsonaro, na esteira do mais rasteiro “populismo”, desprovidos do conteúdo revolucionário do Verdadeiro populismo varguista, inaugurado em 1951 quando o grande líder viu-se alijado do suporte militar garantidor do exercício do poder em benefício das maiorias nacionais e só podia recorrer ao sentimentalismo amorfo das massas, que ele compreendeu e conduziu tão bem, amparado no passado de grandes e concretas realizações em seu favor e benefício, que lhes mudaram efetivamente a vida, e em um aparato de propaganda indispensável a qualquer coisa que se deseje fazer popular, até hoje e para sempre, para lhe angariar votos. O espanto com os fenômenos populistas quase vazios de conteúdo material concreto, contudo, só se disseminou no centro do capitalismo bem mais recentemente, desde a vitória de Donald Trump, ferindo de morte a estabilidade das instituições estadunidenses contemporaneamente à crescente concorrência chinesa, que ameaça tomar-lhe mercados e sobrepujar-lhe economicamente, instalando um novo ordenamento mundial (sob instituições jurídico-constitucionais, políticas, morais e econômicas outras, bastante diversas da propalada democracia ocidental, diga-se, que só logrou relativo sucesso econômico e social na Europa ocidental e nos EUA amparadas em atipias ausentes nas demais partes do mundo, que reproduziram a forma da casca, sem o fruto). Note-se que o sistema bipartidário dos EUA fora considerado, por todos os fiéis da democracia, o sistema presidencialista isento de falhas e que mais se aproxima do parlamentarismo, devido às mediações intermináveis para a seleção dos candidatos, já decantados pelo mecanismo partidário (no Brasil, ainda hoje, crê-se largamente que a salvação da democracia virá com a redução crítica de partidos da paisagem nacional. Engano, ou cinismo.).
Uma figura como Pablo Marçal, sinal dos tempos, demonstra ter uma consciência cristalina destes processos, reafirmando repetidas vezes em entrevistas que a democracia não é o regime do melhor nem do mais capaz, mas é o regime do mais popular. E, de fato, ele soube como ninguém alcançar popularidade, maquinando as tramas da internet, que aprendeu a dominar tão bem. Ora, o que será capaz de tornar alguém extremamente popular, na atual quadra de meios de comunicação massificados, senão o riso e o cômico, a polêmica, o atrito, a confusão, a intriga (Big Brother Brasil, ou a velha fórmula de Carlos Lacerda), o extravagante (Jânio e Bolsonaro), o que chama a atenção, a todo e qualquer custo, o mais belo (Collor)? No limite, o crime hediondo e a tragédia (são os programas policiais recordistas de audiência). O mesmo Pablo Marçal tem plena consciência deste fato, e emula um pedido de desculpas envergonhado aos seus eleitores em reiteradas entrevistas, justificando que para se tornar conhecido teve de fazer coisas e colocar-se em situações de que se arrepende, no mínimo vexatórias a quem possui qualquer senso do ridículo. Antes de Marçal, para citar poucos, ganharam notoriedade na internet pessoas que depilavam o ânus e o gravavam (quase conquistando a prefeitura de Fortaleza, a quarta cidade mais importante do país), outras que se vestiam de vulva e iam a eventos feministas provocar a audiência – os mesmos que provocavam brigas em toda e qualquer oportunidade para aparecer na internet, seguindo o método da provocação MBLista. Por que sorte de coincidência impraticável o mais popular será, portanto, a um só tempo, o mais capaz, na era dos meios de comunicação de massa? Só o reconhecimento destes fatos, tão claros e cristalinos para Pablo Marçal, seria o suficiente para levar qualquer um a descrer nos mecanismos vigentes da democracia brasileira, tão degradada quanto a da República Velha ou a dos interstícios de 1934 e de 1945, todas das quais terminaram por justificar regimes de força no país, historicamente. Por isso vivemos entre democratas ingênuos, de um lado, e cínicos de outro – os que só tem a ganhar com o atual estado de coisas. Uma pessoa abnegada, desejosa de servir ao seu povo e à sua pátria e infenso ao chamado do enriquecimento, por regra, não são populares (excetuando Jesus Cristo) – basta relembrar a campanha presidencial em que o Marechal Teixeira Lott perdeu para Jânio Quadros, e tantas outras campanhas em que pessoas sérias e honradas não logram conseguir maioria de votos. Se forem morais, tendem a ser absolutamente rebaixadas ou desprovidas de habilidades políticas, carismáticas, redentoras de votos.
O que guarda o nosso futuro, inaugurado pela guerra da Ucrânia e de Israel, com tensões escaladas em Taiwan e na Venezuela, em um cenário geopolítico de cada vez maior preponderância Russa e Chinesa, países militarizados por excelência e que funcionam sob instituições jurídicas e sociais completamente diversas, senão um novo ciclo de proeminência das Forças Armadas no Brasil, chamadas que serão novamente ao protagonismo para a garantia da Segurança Nacional? Será possível que a democracia que temos, com toda a sua ineficiência, se compatibilizará com as exigências deste futuro grave de incertezas e inseguranças militares? Será preciso muita sorte. Ou corremos o risco de sermos tomados, em convulsão militar mundial, sob o comando de um comediante, um qualquer popular e inepto como aquele que governa a desintegração da Ucrânia neste momento – pela vitória da democracia ocidental naquele país. Se isso ocorrer, como é provável que ocorra, é certo que veremos um retorno, que já tarda, ao tenentismo no país. Com todas as suas consequências necessárias.
Como último dique de esperanças dos democratas ingênuos encontramos a crença de que quando melhorarmos a educação pátria, veremos serem varridos das posições de comando estas figuras esdrúxulas e estaremos, enfim, mais próximos da salvação das instituições democráticas. Ocorre que não há consenso sobre o que seja esta educação redentora nem como consegui-la; tampouco há consenso sobre a composição do que é esdrúxulo: geralmente fica-se em aspectos completamente superficiais, como nos trejeitos grosseiros de Bolsonaro, sem criticar-lhe o conteúdo liberal-entreguista. De toda maneira, os EUA e alguns países da Europa figuram em posições muito altas nos indicadores internacionais de educação pública e a despeito disto, também pululam nestas bandas sujeitos rebaixados do populismo esvaziado de conteúdo, alcançando altos postos pelo voto. Pelo contrário, na China, recordista nos rankings educacionais internacionais, um regime muito distinto da democracia ocidental é a chave para o progresso há já muitas décadas. O que virá antes da solução de tão intrincada equação liberal: o fim da ingenuidade democrática ou o fim da própria nacionalidade brasileira?
Autor:
João Batista Magalhães Prates. Mestre em Filosofia (UNIFESP, 2022); especialista em Ensino de Sociologia (UFMS, 2022), em Gestão e Controle Social das Políticas Públicas e em Direito Público Municipal (EGC-TCMSP, 2021 e 2023). Possui pós-graduação em Legislativo, Controle Externo e Políticas Públicas no Brasil e em Legislativo, território e Gestão democrática da cidade (EP-CMSP, 2020 e 2023).