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terça-feira, 11 de fevereiro de 2025

Life is a drag

Demorei algum tempo para escrever esse texto. Sabe, pensando bem, talvez o texto tenha se ‘inscrito’ em mim primeiro, numa onda de experiências, trajetórias, itinerários e vivências que culminam no texto que se escreve no desenrolar da vida, nos desencontros, nos acasos, nas brechas ‘marginais’ que deixamos na ponta da folha, no bloco de notas, na gaveta das ideias.

Tenho escrito uma tese de doutorado, e com ela minha vida. Ver o mundo pelo olhar dos outros, viver mil vidas diferentes em uma. Com o tempo aprendi que não há rigor acadêmico ou escrita científica que me separe da poesia, do texto vivo da experiência, dos pés no chão que a pesquisa de campo proporciona.

Tenho etnografado o cotidiano dos outros. Seja dos outros que compõem meu objetivo e objeto de pesquisa, em Roraima, na Amazônia setentrional, no extremo norte do Brasil, isto é, os refugiados venezuelanos, seja no centro de São Paulo, na ponte aérea que ocasionalmente faço para cumprir obrigações acadêmicas.

Com essas experiências, tenho me transformado dia-a-dia. Quer dizer, a identidade não é algo imutável, fixo, preso em um tempo de modo a dizer: “sou isso!”. A identidade é uma transformação permanente. A verdade é que hoje somos alguma coisa, e amanhã somos outra. Podemos ser um conjunto desse ontem e desse hoje, ou mesmo o resultado dos descartes que fazemos das experiências de ontem com o que estamos vivendo hoje. De fato, somos incompletos, porque os tempos oscilam e ainda temos mais a viver, o devir, o vir-a-ser (futuro). No entanto, mesmo incompletos, somos, e por hora isso têm bastado. Opa, será que tem mesmo?

Eu também sou muitas outras coisas, assim como você caro leitor. Antes de doutorando, de músico, de pesquisador, de atleta, sou todas essas coisas, mas quando deixo surgir ‘a coisa’ enquanto escrevo, vou contando minha história. Quando isso acontece, sou todas elas juntas, desorganizadas, bagunçadas e reorganizadas em seguida. Um transeunte entre lugares, pessoas e coisas, um saltimbanco das fronteiras, inquieto flâneur de baudelaire… Me torno, antes de tudo, antes de qualquer coisa, antes de mais nada, sobretudo e entretanto, poeta, poesia inacabada.

É como disse uma vez Cecília Meireles: “Eu canto porque o instante existe. E minha vida está completa. Não sou alegre, nem sou triste: sou poeta”. Nós escrevemos nossa poesia no cotidiano que vivenciamos e nas escolhas que fazemos ou somos obrigados a fazê-la. No abotoar da calça para ir trabalhar, na escrita cansada derivada dos fantasmas do passado, da seleção de pessoas que vamos nos deitar junto, na ‘desrima’ que consoamos no porvir.

Acho que a poesia está presente em tudo, e se manifesta sob os olhos atentos daqueles que estão disponíveis para escutá-la e lê-la sob o asfalto quente da cidade ou o verde maculado do campo. Em São Paulo essas poesias estão nos muros, nas placas, nos bancos da praça. São manifestos políticos, fragmentos de desamores ou alertas que nos lembram de viver o momento presente. Elas também se manifestam no grafitti, nas letras de música que tocam nos barzinhos nas esquinas ou nos panfletos espalhados pelo chão. Na Amazônia, tudo é poesia. A terra, as árvores, o cavalo que corre solto pelo lavrado, o canto dos indígenas. É possível percebê-la nas oralidades transmitidas de geração em geração, nos livros locais, e um pouco mais timidamente, nos muros e vielas da cidade.

Todo esse estopim poético, essa boemia dos guetos de pedra e das savanas tropicais, me trás à mente algumas lembranças e gostaria de partilhá-las aqui. No compartilhamento há reconhecimento, e no reconhecimento, identificação, acolhimento, representatividade. Bom, nem sempre, mas geralmente sim.

Em um dia quente em Ribeirão Preto (SP), por exemplo, estive em um barzinho tomando um drink com colegas, e duas drags conhecidas da noite abraçam um desses colegas e sentam-se à mesa conosco. Conversa vai-e-vem, elas contam que são apenas homens em vestidos que querem se divertir. Drags podem ser isso, não ser, ou ser qualquer coisa. São representações artísticas de uma persona que vive em si e que ao mesmo tempo nos rodeia, nos fascina e nos agarra de supetão sem esperamos. Drags são gritos de desespero, de socorro, de protesto, de arte.

Essas dessa noite logo mais estariam indo para uma boate ali perto, beber mais, dançar mais, e ignorar o olho julgador daqueles da rua que tecem ‘maldosidades’ (essa palavra existe? Se não, invento-a!) à elas em suas cabeças e as vezes até mesmo verbalmente. “Bruxa”, “Prostituta”, “Blasfêmia”, “Docinho”, são alguns dos adjetivos recebidos por elas (e as vezes por elas incorporados também em seus corpos), que fingem não ligar.

Entre suas maquiagens extravagantes, perucas coloridas, botas até o joelho e lantejoulas decorando suas roupas, percebo similaridades comigo mesmo. A gente gosta de desafiar o sistema, não é? Elas, com sua beleza extravagante e glamour psicodélico, eu, com meu moicano levantado, minhas calças rasgadas e minhas tatuagens nos braços expostos pela regata chamando atenção igualmente, somos, no mínimo, um grupo estranho, colorido, diverso, de punks e drags transloucos/as/es que querem revolucionar o mundo. Apenas por uma noite, que seja, o mundo será obrigado a nos aceitar, como uma quebra de rima em uma poesia quase perfeita.

Daí volto-me para outra lembrança. Um de meus ex decidiu abandonar a vida que levava e entrou em um monastério para se tornar frei católico. Anos após suas renúncias, conseguiu alcançar esse título, e seu clero passou a ser seu estilo de vida. Visitei-o em Vila Velha (ES) em uma determinada ocasião há alguns anos. Sua casa agora era um seminário, onde participava do treinamento de outros possíveis freis e padres, além de ajudar os moradores de rua com distribuição de alimentação e aconselhamentos diversos à pessoas em tratamento de vício em drogas.

Caminhando pelos corredores desse seminário com ele ao meu lado, sinto um forte cheiro de incenso, e nas paredes quadros, imagens e estátuas com muitos santos. Me sinto como naquela cabana improvisada de Cole, personagem do filme “O Sexto Sentido”, que furta vários santinhos de igrejas e os coloca organizadamente em um local para o ‘proteger’. Spoiler alert: eles não o protegem de nada! Mas essa é a sensação que fica, da tentativa de proteção de alguém mais santo que nós e com um poder que não temos.

Colocamo-nos pois a conversar mais, eu e ele, saber do presente da vida, os planos para o futuro. Olhando pra ele, eu percebo nossa breve história juntos, naquele passado como amantes ferozes que se esqueciam do horário ou de tudo que conspirava para não ficarmos juntos, mas percebo também que o desenrolar da vida nos levou a ressignificar a forma como nos relacionamos. Seus votos de pobreza e castidade o impedem de viver a mesma vida que antes, mas lhe deram outra vida, uma que tenha significado para ele. Quando adentrei aquele recinto, não vi apenas um ex amante, mas também um amigo. Alguém-outro, mas ainda aquele-alguém, se olhar bem, por detrás daquele primeiro olhar, daquele roupão de frei, de suas novas rugas de cansado do trabalho árduo. “Estou cansado, mas feliz! Eu realmente nasci pra isso!” Ele me diz. E assim seguimos a vida.

Essas experiências parecem ser aleatórias, mas quando olhadas pela lente macro da vida, em prospecto, vejo o quanto elas afetam em minha forma de ver a vida, de conceber ideias, de fazer escolhas. Seja tomando um porre com algumas drags, ou em um monastério tomando café com um frei, isso tudo culmina em meu texto, em meu interior… em mim. Aliás, se posso ser lido, interpretado e representado, não seria eu também um texto?

Cresci na Amazônia e aprendi a me relacionar com a floresta. Ler a floresta é saber que quando o dia está muito quente é porque talvez vá chover. É saber que quando os girinos entoam seu coaxar de forma diferente próximos aos rios, é porque o rio vai encher nos próximos dias. É crescer aprendendo todo tipo de remédio curandeiro, como por exemplo a casca de uma determinada árvore ou folha de tal planta que só tem “pras bandas de cá”. É tomar açaí com peixe frito com limão, e comer o popular chibé, isto é, a carne seca com farinha molhada (e com pimenta, claro). É sentir o sol queimar a pele e os pensamentos na terra onde o sol toca com seus 40 graus célcius diários.

Como estudante de doutorado em São Paulo, fiz essa migração para a grande metrópole do país. Em São Paulo, as pessoas sempre andam apressadas, como se fossem perder a hora. As pessoas passaram a morar ‘pra cima’, nos vários prédios espalhados pela cidade. Quase não vejo quintais e árvores, mas os muitos meios de transporte, isto é, carros, metrô, trem, moto e ônibus, talvez sejam os responsáveis por eu respirar um ar tão mais denso e poluído que o amazônico. Tudo é um pouco mais longe, e por isso demanda mais tempo para se organizar e sair de casa. Além disso, as coisas no mercado são bem mais caras que no norte do país. Quando faz 22 ou 23 célcius, as pessoas dizem: “nossa, que calor!” (e esse é o ápice do nosso frio no extremo norte). As frutas regionais do sudeste tem um gosto mais doce, mas o açaí é nota zero, se comparado ao nosso do norte.

Porque escrevo sobre tudo isso, assim, quase vomitando palavras que parecem sem sentido? Por que o conjunto dessas coisas todas me trazem ao momento presente, a esta escrita, a esse reconhecer de minha jornada olhando para ela e analisando-a com os olhos críticos da experiência. Nelas, e em todas as outras que estão nesses meus anos, sou/estou escritor de uma tese, colecionador de poesias cotidianas. Uma vez escutei que o tempo nos permite experimentar a benção da criação, a maldição da queda e a esperança da redenção. E assim tem sido, uma cosmovisão de múltiplas culturas, movimentos, linguagens e andanças. Um tempo que não é cronológico, mas feito dos significados que damos às suas vivências que se transformam em memórias (passado) ou expectativas (futuro).

E é isso que versamos entre os muitos lugares que transitamos: o lugar, o não-lugar e o entrelugar. E talvez a vida seja isso mesmo, algumas drags bêbadas e loucas querendo diversão e uns trocados, um frei que trocou uma vida de muitas marijuanas por renúncias e redenções, ou um migrante amazônico desbravando a cidade grande e suas muitas aventuras.

Estou feliz e emocionado escrevendo minha tese. E um pouco louco também, já não sabendo que horas são e nem quanto ainda falta para finalizar. Com metade da barba já enbranquecida, algumas latas de energético pelo chão representam o custo do meu avanço. No entanto, eu não poderia estar mais realizado quanto agora! Enquanto avanço, deixo correr solto o que precisa de liberdade, e já não sou eu mais quem decide, mas a própria pesquisa que escreve seu roteiro através de mim. Histórias que não são contadas tornam-se fardos. E são, assim, esquecidas com o tempo. Por isso, as escrevo, transcrevo, nem sempre apenas no papel, mas também na pele e na alma, contando e recontando em forma de pesquisa, de poesia, ou de crônica, como esta.

Coloco em diálogo Sartre, Foucault, Marx, Freire, Lispector e até Einsein (entre outros tantos), me tornando o mediador desses autores, sempre orientado pelos objetivos de meu trabalho, e nesse exercício me (auto)revelo também um sujeito da pesquisa, um autor-pesquisador em diálogo nesse blues narrativo, descompromissado com regras que restringem o pensamento fenomenológico (isto é, de compreensão de fenômenos) ao mero acaso positivista (isto é, aquele que neutraliza a pesquisa), compondo a polifonia das vozes de minha investigação científica. A vida não é linear, ela se movimenta em um ritmo narrativo orientado pelas escolhas, capacidades e potencialidades que adquirimos e acumulamos. Pensamos que temos algum tipo de controle, mas apenas controlamos o que orbita o que pensamos que vemos, isto é, o controle que pensamos que temos. Qualquer outra possibilidade fora desse espectro, nos escapam às arestas e saltimbancam às certezas.

A vida é, então, como uma drag. Um lá-e-cá, um contraste da noite e do dia, um sorriso de um homem barbado discreto durante o dia que surge de batom estratosférico à noite e cílios de meio metro. Ou seja, a vida é um leva e trás de possibilidades, um troca-troca que em alguns momentos é colorido, espalhafatoso, crítico e até mesmo uma anedota (em alguns momentos). Em outros, quando o show acaba, alguém que por detrás dos quilos de maquiagem, bate cabelo e da neca aquendada, tem boletos, traumas, dores, contatinhos, sangue quente, rotina. O caos que surge desses mundos colidindo, o personagem que o outro personagem assume para fugir, extravassar, pôr pra fora seu próprio caos e dele fazer uma festa, uma manifestação, uma poesia, encontra, em seu fim, liberdade.

“Life is a Drag”

Josh

Josh
Josh
Sempre sonhei em ser cientista. Sonhador, Indagador, Pensante, Teólogo, Pesquisador. Mas então tudo mudou: me tornei poeta. Meu escritos são uma projeção da minha mente hiperativa.

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