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quinta-feira, 5 de junho de 2025

Filosofia de Bar, Fatos e Narrativas

A arte de ser sábio é a de saber o que ignorar. William James

Eles o chamam de Professor, Filósofo, Analista, mas ninguém sabe exatamente o que ele é, nem o que leciona. Às sextas-feiras, vai ao Bar do Bigode para tomar cerveja, filosofar e os clientes ficam ansiosos para beber, petiscar e ouvir seus ensinamentos. O Professor tem mesa fixa e as pessoas disputam os lugares próximos, como Allan Gerrí, fã de carteirinha. Reflexões da última sexta:

O mundo está cheio de obviedades que ninguém enxerga – diz o Professor. É difícil ler jornal, assistir noticiário, ouvir uma análise e compreender o que foi escrito, visto ou dito. Parece que só as mentes privilegiadas compreendem, pois o discurso muda o tempo todo, em favor de quem pagar mais. Um fato costuma ser o que parece, mas é incrível como a narrativa distorce. Tem gente que distorce os fatos para se encaixarem na sua ideologia. Nas palavras de Mark Twain, a narrativa faz mais sentido do que a verdade. Todos têm direito à própria opinião, mas não aos próprios fatos.

Quando o Professor fez uma pausa para dar um “tapa” na cerveja, notou os clientes boquiabertos: uns pensativos, outros fazendo “cara de conteúdo” e outros apenas sonolentos e babando álcool. Ele sabe que está agradando e curte o momento.

  • Existe mais de uma interpretação para um mesmo fato? – perguntou Allan.
  • Sim – respondeu o Professor. Umas pertinentes e outras pura baboseira. Os insensatos inventam termos como “despiorar” e relativizar. Se confrontados, culpam os outros pelos seus erros ou dão respostas evasivas. Tentam cruzar cabra com periscópio para gerar um bode expiatório. 

O Professor explicou o é “bode expiatório”, os clientes se admiraram e o Bigode ficou contente com o consumo. Então ele contou a fábula dos cegos colocados diante de um elefante: Um cego apalpou a pata disse que o elefante parece uma árvore; outro tocou a barriga e achou que fosse uma parede; o rabo parece uma corda e a tromba uma cobra. Nenhum deles teve a noção do todo. Muitos não cegos enxergam somente o que querem ver, ignoram o restante e distorcem a análise.

Allan Gerrí anota tudo para reler depois. Sujeito simples, com pouca instrução, ingênuo e ansioso por aprender, ousou comentar:

  • Os políticos dizem que vão trabalhar para o povo, mas depois enganam o eleitor. Prometem acabar com a corrupção e acabam se metendo em escândalos financeiros.
  • Mark Twain disse que, se votar fizesse diferença, eles não nos deixariam fazer isso. Para Millor Fernandes, acabar com a corrupção é o objetivo de todos aqueles que ainda não chegaram ao poder.
  • Verdade! Quando chegam lá, parece que o poder muda as pessoas.
  • Abraham Lincoln diria que o poder não muda ninguém, apenas revela seu verdadeiro caráter.

Após 150 minutos filosofando e respondendo perguntas, o Professor se retirou, muito aplaudido. Dirigiu-se ao Caixa, não para pagar a conta, mas receber a taxa que o Bigode cobra dos clientes e combinar o tema da próxima sexta. Aí ele pesquisa na Internet e nas anotações da prima, estagiária de jornalismo. Ele não é intelectual. É apenas convincente e tem boa lábia.

Allan Gerrí foi para casa repetindo: Muitos fatos são exatamente o que parecem; As pessoas criam narrativas para adequar o fato à ideologia; Besteiras são sempre besteiras, mesmo quando ditas por gente importante; O sábio muda de opinião, o idiota nunca. Allan ama citar frases famosas.

Próximo ao predinho onde mora, viu a vizinha Mia Kuda escorregar e cair sentada. Allan levou Mia para o apartamento dela, com tornozelo inchado e hematoma na coxa. O cóccix doía e ela gemia. Mia Kuda queria comprar lingerie, pois só tem sutiãs frouxos e está praticamente sem calcinhas. Escorregou, caiu, se sujou e se machucou. Pediu para o vizinho ajudá-la no banho, depois passar pomada e massagear as áreas doloridas. A esposa de Allan escutou os gemidos, levantou-se, colou a orelha na porta do apartamento da vizinha e ouviu:

  • Mais força, querido. Não tenha dó. Ah, que delícia! Você é perfeito, Allan!
  • Estou dando o melhor de mim. Quer mais uma vez na coxa?
  • Já é tarde e estou cansada. Me deixa dormir. Amanhã a gente continua.

Allan ficou feliz por ter ajudado Mia, mas ao sair, deu de cara com a mulher. Muito irritada, ela disse que ia levar um papinho com a safada e mais tarde cuidaria dele.

  • Agora não é uma boa hora. As coxas e o cóccix doem muito e acho que Mia já dormiu. Além disso, ela está sem calcinha!

A mulher de Allan o deixou e ele não sabe quando terá alta. Ao comentar o caso, o Professor disse que o fatos pode ter diferentes interpretações. As pessoas acreditam naquilo que querem acreditar e, para muitos, vale mais a própria versão que o fato em si. Vida que segue!

Laerte Temple
Laerte Temple
Administrador, advogado, mestre, doutor, professor universitário. Autor de Humor na Quarentena (Kindle) e Todos a Bordo (Kindle). Crônicas de humor toda sexta-feira, às 10h.

6 COMENTÁRIOS

    • Obrigado pelo comentário prof. Nivaldo. Sinta-se à vontade para reproduzir, este e qualquer outro. No site do jornal, na aba Crônica, se clicar em meu nome, acessará quase 150 textos. Publico toda sexta-feira, 10h. Amanhã, o tema será os Especialistas em Generalidades. Forte abraço.

  1. Raro ler lucidez com suavidade e principalmente com tamanha serenidade. Parabéns pelo belo texto com zero narrativa, mas tendo que falar muito sobre está praga que assola o mundo. Essa praga, junto com o demoníaco “politicamente correto” estragaram o mundo de forma intencional. Por isso, que mais textos assim possam ser um balsamo a quem chegar e puder ler. Grande abraço e felicidades. Deus abençoes sua jornada!

    • Muito obrigado pelo comentário, Antonio. Realmente, o mundo está ficando muito chato. Temo que as novas gerações se percam nas análises, pela absoluta falta de senso crítico. É tanta “norma” absurda e anacrônica que logo não será possível falar sobre qualquer assunto por medo de magoar uma das 734 minorias. Forte abraço.

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