Alguém já disse que o homem é livre para decidir, mas torna-se escravo de suas decisões. Também dizem que toda teoria cedo ou tarde desaba e só as boas observações são duradouras. Otta acredita piamente nisso, porém contradições e decisões equivocadas povoam sua vida. Ela pertence ao grupo das pessoas que sofrem muitas desgraças, continuam atraindo catástrofes e nutrem profundo rancor pelo universo.
Mas não foi sempre assim. Até o Colégio, era tão fogosa quanto uma gata no cio. O que mudou em sua vida? Com a idade chegando à terceira dúzia, este será o 12o Dia dos Namorados que ficará em casa, apenas ela e o gato Toupeira.
Devia ter se formado com 21 anos, mas na Festa dos Calouros, alguém lhe deu algo para beber e disse: experimente, você vai gostar! Era cachaça batizada misturada com groselha, conhaque e um baseado de orégano. Viciou na hora. Passou a acordar tarde, sempre em camas diferentes e com gente que não conhecia. Dormia durante as aulas e nas provas, chutava o que não sabia e errava o que sabia. Fugiu de várias clínicas de desintoxicação e só se formou aos 24 anos, sóbria, porém a fama de cachaceira e o apelido Maria Fumaça impediram qualquer romance real.
A exceção de Vânio, com quem passou incríveis 3 horas namorando enquanto ele cochilava, nos demais casos amorosos, seu parceiro nunca soube da relação. Ela seguiu em frente rumo aos constantes fracassos enquanto Vânio construiu uma carreira bem sucedida e namorou Sérgia, arqui-inimiga de Otta.
Dizem que a prática leva à perfeição, exceto na Roleta Russa, que Otta tentou várias vezes, mas falhou em todas. Fala bem, porém alonga e complica até as histórias mais simples. Coordenação motora péssima, torceu o tornozelo num bingo. Mas é batalhadora, resiliente e incansável. Toda manhã acorda pensando: como vou mudar o mundo hoje? Sai de casa altamente motivada e, na hora certa, tudo dá errado.
Interessou-se por literatura de autoajuda, coach e lives motivacionais. Consome tudo o que é ofertado nessas áreas e segue à risca as orientações dos gurus. Comprou um espelho e afixou ao lado da porta da sala. Antes de sair de casa, olha-se, sorri e diz: hoje tudo vai dar certo! Tudo dá errado, mas ela não se abate: troca de espelho e repete o procedimento.
Na véspera de mais um Dia dos Namorados, quando voltava de uma entrevista de emprego fracassada, Otta encontrou Vânio numa cafeteria. Ele estava bastante abatido.
- Pisei na bola com Sérgia e ela me deixou há uma semana. Este será meu primeiro Dia dos Namorados sozinho.
- Bem vindo ao time! Eu sempre passo com meu gato Toupeira, que não consegue encontrar uma gata para cruzar.
Conversa vai, conversa vem, combinaram jantar no dia 12, para não passar a data solitários. Otta animou-se. Afinal, seria sua primeira vez, aos quase 36 anos de idade. Foi à clínica de depilação, cabeleireiro, lojas de roupas, perfumes, calçados e levou Toupeira ao Pet Shop. O fim da noite será em sua casa e tudo deve estar na mais perfeita ordem. Vânio virá buscá-la às 20 horas, no mais glorioso Dia dos Namorados de sua vida.
Decidiu tirar um cochilo para conter a ansiedade e estar bem disposta para a noite. Programou o celular para despertar às 19h, tomar uma ducha e se vestir. Durante o cochilo, delirou e visões tenebrosas a atormentaram até que o Bip soou. Sentiu alívio, mas ainda eram 18 horas. Não foi o despertador, mas um aviso de mensagem. Não se acorda ninguém no meio de um pesadelo! Focou a vista e leu: “A Sérgia me perdoou e voltamos! Temos de adiar o encontro, talvez para daqui a nunca mais. Deseje-me sorte. Faz um cafuné no Toupeira por mim”.
Otta assimilou o 12o fracasso consecutivo lembrando que 13 é seu número de sorte. Chamou o Toupeira, que não respondeu. Tomou banho e vestiu-se como se fosse para sair. A campainha tocou. Será que a mensagem fazia parte do pesadelo? À porta, um belo homem, maduro, rosto familiar, bem vestido, perfumado e charmoso, com dois felinos no colo. Um era o Toupeira. Já tinha visto aquela cara nas redondezas.
- Olá! Sou Ariel. Moro no prédio em frente. Creio que este gato é seu.
- Oi. Sou Otta. Ele é meu sim, o Toupeira. Onde o encontrou?
- Ele e minha gata estavam se entendendo, mas demoraram muito e decidi trazê-lo de volta para você não se preocupar.
Às vezes, quando menos se espera, aí é que nada acontece. Otta convidou Ariel a entrar, beberam o vinho reservado para Vânio, conversaram, conversaram, e ele foi embora. Otta, abraçou o gato e fez um balanço do 12o Dia dos Namorados sozinha. Pensou como seria sua vida com Ariel, nome comum para homem, mulher, sereia ou sabão em pó. Mas ele é apenas um belo e comprometido gay. Lamentou ter castrado o Toupeira. Frustrou Charlene bem no Dia dos Namorados. Vida que segue.
Brilhante!
Laerte, você consegue manter a atenção e o riso do princípio ao fim da crônica.
Parabéns!
Texto ágil e inteligente, a própria voz do autor! Adorei, Laerte
Retrata muito bem a vida de muita gente, um pouco melancólica. Gostei da crônica, parabéns, Laerte!
Obrigado pelo comentário, Cibele. Abs.