Quem nunca participou de festas juninas na escola? Muitos adolescentes jamais dançaram a quadrilha por pura timidez. Pedro, o maior nerd da classe, faz-se de desinteressado, mas é para esconder a timidez. Inveja os colegas que dançam com as meninas bonitas, mas tem vergonha de participar. No último ano, confidenciou a João e a Antônio sua frustração por nunca ter dançado a quadrilha e por ver sua paixão, Madalena, ser a noiva do Matheus em todas as festas.
Para ajudar o colega, João prometeu apresentar o tio empresário para a professora responsável pela dança caso Matheus fosse o padre, a piriguete Madalena a noiva e Pedro o noivo. Dobrou Madalena com grana, bebidas e passe grátis para o Motel do tio.
Pedro se surpreendeu quando Madalena o chamou para ser seu par. Pensou em se esquivar, mas os amigos o forçaram a aceitar o convite. No ensaio, parecia uma lagarta deixando o casulo, porém, trato é trato e o arranjo funcionou. Agora era só decorar as falas para o casório, mas o nervosismo gerou uma crise de diarreia. Pedro não foi ao colégio no dia seguinte, nem na festa. Dias depois, pediu Madalena em namoro, mas a piriguete dispensou. No final do curso, a turma debandou e cada um seguiu seu destino.
Pedro fez carreira como executivo de multinacional, morou na Europa, nos Estados Unidos, perdeu a timidez e se tornou um pé de valsa. Dançou em dezenas de boates e festas, todos os ritmos, menos a dança da quadrilha. Namorou inúmeras beldades, mas não se casou. Seu coração pertencia à Madalena. Nunca teve perfis em redes sociais, pois tem amigos suficientes. Agora, idoso, com memória fraca, visão e audição debilitadas, o tempo é medido em décadas, o peso corporal em arrobas e as caminhadas matinais em meia centena de jardas.
Aos 75 anos, aposentou-se e retornou a São Paulo, num mês de junho. Passando em frente ao antigo colégio, leu a faixa: Festa Junina, fogueira, quentão e a tradicional dança da quadrilha. Lembrou-se do evento em que quase foi o noivo de Madalena, paixão secreta, mas a timidez, o nervosismo e a diarreia impediram.
Sem programa para a noite, decidiu ir à festa. Chegou cedo, circulou pelo colégio deteriorado e visitou sua sala de aula. Tudo aquilo lembrava um enorme banheiro químico, consequência do desprezo do Estado pela educação. Voltou à festa.
Emocionou-se ao ver Madalena numa cadeira de rodas, semi acabada, cabeça baixa e inclinada, inerte, lenço na cabeça e envolta numa manta tão chamativa que podia ser vista até do satélite do Google. Puxou a cadeira e conversaram bastante, ou melhor, só ele conversou. Ela nada dizia e ele até sugeriu que piscasse duas vezes caso estivesse lá contra a vontade. Pedro lembrou do ensaio da quadrilha, da diarreia, falou da carreira bem sucedida e a vida boa que levou, exceto pela falta de filhos e netos. Queria de volta seu coração, já que o dela nunca poderia ter. Antes de ir à barraca de bebidas, ousou beijar-lhe os lábios, finalmente, após mais de meio século. Na fila do vinho quente, colocou os óculos para ler os preços, quando alguém o cutucou.
- Por acaso você é o Pedro Siqueira?
- João? É você, cara? Há quanto tempo! Sem os óculos, nem te reconheci.
- Você está com ótima aparência. Firme e forte. Enricou?
- Não posso reclamar da vida, nem da grana. A saúde está boa, mas a vista anda fraca. Sem os óculos, não enxergo um palmo diante do nariz.
Os dois conversaram animadamente. Enquanto a fila andava, João contou que se casou com a Ritinha, tiveram 3 filhos e hoje veio à festa para ver os netos dançarem a quadrilha. Disse que Antônio sumiu do mapa. Nunca mais teve notícias dele.
- E a Madalena. Que dó! Está acabada. Quem diria?
- Você viu a Madalena? Onde? Quando?
- Agorinha, aqui na festa, numa cadeira de rodas.
- Tá louco? Ela se casou com o Matheus, lembra dele? Eles brigavam muito, até que ela deu várias facadas nele, largou o cara com os dois filhos e foi morar no Piauí com um traficante. Parece que casou três vezes e já esteve presa. Entrou para a política e hoje é prefeita da cidade.
- Então quem é aquela na cadeira de rodas?
- Pedro, põe os óculos. Aquilo é o que sobrou do Matheus, depois do AVC e do Alzheimer.
Pedro enojou, teve sintomas de diarreia, desistiu do vinho, despediu-se de João e foi embora. Arrependeu-se de ter conversado com o que parecia ser Madalena. Esqueceu a regra número um do dispensado: jamais ir atrás de quem o dispensou! Viu crianças dançando quadrilha e pensou o que teria acontecido se ele não fosse tão tímido nos tempos de colégio. Provavelmente estaria na cadeira de rodas e a amada gandaiando no Piaui. Fim de vida que segue.
Muito boa a crônica , como sempre, é bem o acontece na nossa infancia e adolecencia, parabens Temple, continue , forte abraço
Obrigado, amigo Favrin
Final surpreendente!
Levou uma vida pensando na piriguete, para beijar a boca de um homem, por engano…
Sobrou-lhe inteligência, mas faltou-lhe malícia, Pedro!!!
😂😂😂😂😂
Muito bom! 👏🏻👏🏻👏🏻
Obrigado pelo comentário, Marisa. Abraço.