Qual Foi a Ideia de Crítica Desenvolvida Por Kant Que Marcou o Pensamento Político Moderno Conhecida Como Racionalismo Crítico? Qual é o Conteúdo do Racionalismo Dogmático? Quais São os Quatro Problemas a Serem Enfrentados no Campo do Conhecimento, da Moral, da Religião e da Antropologia Colocados Por Immanuel Kant?
O pensamento de Kant é marcado pelo racionalismo e, na primeira fase (pré-crítica), o filósofo sofreu a influência de pensadores como Descartes, Leibniz e Wolff. Na segunda fase (crítica), ele despertou do “sono dogmático” sob a tutela de David Hume – como descreve nos “Prolegômenos”: “Confesso francamente que foi a advertência de David Hume que, há muitos anos, irrompeu o meu sono dogmático e deu às minhas investigações no campo da filosofia especulativa uma orientação inteiramente diversa. ” (KANT, 1988, p.17)
Inspirado pela leitura e pelos questionamentos céticos de Hume – empirista escocês que deu destaque à importância da teoria do conhecimento humano – Kant desenvolveu a ideia de crítica que marcou profundamente todo o pensamento político moderno, conhecida como racionalismo crítico. Os conceitos de ideias inatas e de noções a priori, desenvolvidos por Descartes, Leibniz e Wolff, pretendiam dotar o racionalismo de um grau de certeza que fosse suficiente para atingir as verdades absolutas e, assim, construir a base para a metafísica.
Para Hume, esse tipo de pensamento – racionalismo dogmático – não poderia se sustentar se fosse submetido a uma crítica contundente sob o enfoque da noção de causalidade. Para o empirista, a conexão entre causa e efeito é impossível de ser percebida a partir de conceitos a priori, ou seja, a razão é incapaz de pensar a priori, pois somente a experiência poderia atribuir à essa relação certa margem de segurança. O conceito de crítica ocorre a partir do grau de insegurança que Kant reconhece e imputa à metafísica clássica. A fraqueza com que os argumentos metafísicos são elaborados faz com que as conclusões obtidas sejam dotadas de profundas incertezas, que por sua vez tornam todo o arcabouço do pensamento filosófico carecedor de segurança e certeza.
Se por um lado, Kant deseja abandonar o velho dogmatismo carcomido – como ele próprio declara na sua obra “Crítica da Razão Pura” – por outro, também, não nutre simpatia pelo ceticismo. O apego puro à experiência impossibilita a concepção de realidades transcendentes e, consequentemente, inviabilizam o possível pensamento sobre a alma, o mundo em sua totalidade e Deus. Reconhece, dessa forma, que problemas como a imortalidade da alma e a liberdade do homem são metafísicos. Kant (2000:53) afirma que: “[…] embora todo o nosso conhecimento comece com a experiência, nem por isso todo ele se origina justamente da experiência”.
O pensamento de Hume funciona apenas como uma mola propulsora para o racionalismo crítico, não como base para seu desenvolvimento formal, já que pretende superar a dicotomia entre racionalismo e empirismo. Coloca, adequadamente, o seguinte problema: por que a metafísica carece do mesmo grau de certeza que sustenta a matemática ou a lógica? Kant responderá a este problema fundamentando toda sua filosofia nos conceitos de razão e crítica. O instrumento que dotará a metafísica de segurança será pautado pela adequada utilização da razão e o método é o reflexivo. Todo o seu esforço filosófico concentra-se no propósito de reabilitar a metafísica, a partir da defesa da razão, contra o ceticismo. Dessa forma, Kant coloca quatro (4) problemas a serem enfrentados, no campo do conhecimento, da moral, da religião e da antropologia:
- O que posso saber?
- O que devo fazer?
- O que posso esperar?
- O que é o homem?
Tendo como ponto de partida essas quatro (4) questões, Kant deverá sustentar em sua filosofia a possibilidade de determinar as fontes do conhecimento humano, a utilização possível e útil de todo saber e os limites da razão. Para que não caia nos mesmos problemas enfrentados pelo racionalismo clássico, Kant se propõe a estruturar seu pensamento metafísico desde a análise do termo razão. Esse processo será desenvolvido segundo um exame crítico da razão, perguntando-se sobre as possibilidades dessa faculdade e sobre as possibilidades dos conhecimentos a priori.
Dessa forma, será fundamental encontrar um modelo que dê sustentação a essas possibilidades. “A filosofia precisa de uma ciência que determine a possibilidades, os princípios e o âmbito de todos os conhecimentos a priori”. (KANT, 2000:56). A razão irá fornecer os parâmetros da investigação filosófica, ao colocar as regras e os limites de sua atividade. Assim, podemos saber até que ponto podemos confiar na própria razão. A segurança que Kant tanto busca está na possibilidade de refletir sobre os conhecimentos racionais, tendo como ponto de partida a natureza da razão, num movimento no qual o sujeito volta-se para si mesmo, segundo suas operações.
Na sua obra “Crítica da Razão Pura”, onde concebe uma filosofia transcendental, Kant descreve: “Uma tal ciência teria que se denominar não uma doutrina, mas somente Crítica da razão pura, e sua utilidade seria realmente apenas negativa com respeito à especulação, servindo não para a ampliação, mas apenas para a purificação de nossa razão e para mantê-la livre de erros, o que já significaria um ganho notável. Denomino transcendental todo conhecimento que em geral se ocupa não tanto com objetos, mas com nosso modo de conhecimento de objetos na medida em que este deve ser possível a priori”. (KANT, 2000, pág. 65).
Kant sustenta a viabilidade de criar um inventário de todas as formas a priori do espírito, uma vez que conhecer significa dar forma a uma dada matéria. A matéria do conhecimento varia de objeto para objeto, já a forma é imposta pelo sujeito ao objeto. A possibilidade de conhecimento de um objeto, já sabemos a priori, depende das formas que o espírito impõe. Por sua vez, o critério seguro para avaliar e distinguir o conhecimento a priori está explicitado na seguinte premissa: a priori é toda proposição universal e necessária. Na sua Crítica, expõe:
“O que importa aqui é um traço pelo qual possamos distinguir de modo seguro um conhecimento puro de um empírico. Na verdade, a experiência nos ensina que algo é constituído deste ou daquele modo, mas não que possa ser diferente. Em primeiro lugar, portanto, se se encontra uma proposição pensada ao mesmo tempo com sua necessidade, então ela é um Juízo a priori, se além disso é derivada senão de uma válida por sua vez como uma proposição necessária, então ela é absolutamente a priori.
Em segundo lugar, a experiência jamais dá aos seus juízos universalidade verdadeira ou rigorosa, mas somente suposta e comparativa (por indução), de maneira que temos propriamente que dizer: tanto quanto percebemos até agora, não se encontra nenhuma exceção desta ou daquela regra. Portanto, se um juízo é pensado com universalidade rigorosa, isto é, de modo a não lhe ser permitido nenhuma exceção como possível, então não é derivado da experiência, mas vale absolutamente a priori. Logo, a universalidade empírica é somente uma elevação arbitrária da validade, da que vale para a maioria dos casos até a que vale para todos, como por exemplo na proposição: todos os corpos são pesados. Ao contrário, onde a universalidade rigorosa é essencial a um juízo, indica uma fonte peculiar de conhecimento do mesmo, a saber, uma faculdade de conhecimento a priori. ” (KANT, 2000, pág. 54-55).
Uma realidade que nos é dada pode ser experimentada pela experiência. Contudo, essa mesma experiência não pode nos fornece os elementos para uma análise sobre o porquê esta realidade nos é dada desta forma e não de outra. Assim, a experiência nos fornece proposições contingentes, enquanto que as leis da razão nos fornecem proposições necessárias. A razão, inerente ao sujeito, é a fonte de todo conhecimento seguro, já que emana proposições universais e necessárias, pelas quais o ser humano percebe o mundo, os objetos. Como exemplo, citamos o conhecimento matemático. Portanto, sujeito e objeto, enquanto termos relacionais fazem parte do processo que pontua o processo de conhecimento.
No processo de conhecimento, contudo, deve-se reconhecer a possibilidade da faculdade das intuições ou a sensibilidade, dotada de certa espontaneidade. Assim, observasse a ocorrência de formas a priori da sensibilidade e formas a priori do entendimento.
As formas a priori da sensibilidade, o espaço e o tempo, são os modelos universais e necessários pelos quais os seres humanos percebem as coisas. Percebemos e conhecemos as coisas sempre no espaço, a forma do sentido externo, e no tempo, a forma no sentido interno. Os indivíduos percebem as coisas dotadas de dimensões espaciais e inseridas a partir do conceito temporal (o que passou não mais retornará). A geometria, por exemplo, trabalha com o conceito de forma no sentido externo, ou espaço.
Já as formas a priori do entendimento traduzem a maneira particular de o espírito humano conceber as coisas. Nesse aspecto, Kant reconhece a substância e a causalidade como categorias. O que significa dizer que: só podemos conhecer as qualidades sensíveis como sendo intrínsecas à substância e a ocorrência de fenômenos como elementos de um processo de sucessão causal.
Mesmo com a mudança da substância, possuímos a capacidade de perceber que algo se conserva, por outro lado percebemos também, que todo fenômeno é causado. Assim, todas essas percepções são sempre a priori. Dessa forma, as categorias apresentam-se como elementos que possibilitam fazer ligações. Sensivelmente, percebemos as coisas e a relação entre elas, portanto conhecer é ligar. Por outro lado, significa dizer também que os conteúdos que são conferidos às categorias são concedidos pela sensível.
Pensar Deus ou a alma é possível, mas conhecê-los impossível. Esse tipo de pensamento, para Kant, é viável, contudo ilegítimo, uma vez que o entendimento, por ser constitutivo, formata a experiência por meio de seus conceitos e a razão, por ser reguladora, orienta o pensamento para o absoluto, porém, sem a possibilidade de atingi-lo.
Assim, na Crítica da Razão Pura, Kant investiga sobre as condições de possibilidade do conhecimento. Como sujeito e objeto se relacionam e em que circunstâncias esta relação pode ser considerada legitimamente. Kant pretende uma filosofia crítica que forneça as condições sob as quais o homem possa conhecer o real orientado pela faculdade racional, única e exclusiva fonte de segurança.
A filosofia moral de Kant, sustentada pelo conceito de razão prática, intenta promover a análise do homem como agente livre e racional, e não mais como sujeito na relação do conhecimento.
No domínio da razão teórica o homem é limitado pelas condições impostas pela relação de conhecimento, já no domínio da razão prática o homem é livre, concebido como um fim em si mesmo. Para o filósofo, o campo da ética também é marcado pela racionalidade e universalidade, uma vez que não abre espaço para subjetivismos ou práticas culturais ou sociais. Há a necessidade de se estabelecer uma lei a priori que seja pertencente à racionalidade humana universal. Assim, estabelece a máxima expressa pelo imperativo categórico: agir de acordo com uma máxima, que se queira como universal. O imperativo categórico de Kant é único e não admite variações, é, portanto, absoluto.
A ética do dever, derivada da racionalidade humana, está fundada em preceitos e leis de caráter universais, que definem os deveres de cada um. Esses preceitos, leis ou princípios morais são decorrentes da razão prática e aplicam-se a todos independentemente de condições temporais ou geográficas. Assim, o uso prático e livre da razão é fundamental para a constituição da moralidade. Nesse sentido, a razão fornece o mecanismo para o reconhecimento dos princípios morais e pontua as relações, de forma ética.
A determinação causal orienta o mundo fenomênico (realidade natural) e o ser humano, inserido nesse contexto, também está sujeito às relações de causa e efeito. Contudo, somos dotados de razão, característica que essencialmente nos difere de todos os outros seres e que faz com que não estejamos sujeitos às regras da causalidade no campo da moral. Estamos sujeitos, por outro lado, aos princípios morais ditados pela razão.
A ética de Kant pressupõe a existência de uma consciência moral que dita seus próprios princípios. Assim, é possível estabelecer os preceitos imutáveis e universais da moral, que se impõem a todos os seres racionais, e que se apresentam na forma de uma lei que requer obediência. Aqui, o filósofo, apresenta o critério para o agir ético, já que a lei moral, por ser invariável, está fundada num dever. A liberdade decorre da aceitação e cumprimento desse dever, que supõe o poder fazer algo. O imperativo categórico kantiano não decorre da experiência e sim da razão, de uma razão prática que é legisladora e que define os contornos do agir e das condutas humanas.
Eduardo C. B. Bittar e Guilherme Assis de Almeida, em Curso de Filosofia do Direito, comentam sobre a ética kantiana:
“O homem que age moralmente deverá fazê-lo não porque visa a realização de qualquer outro algo (alcançar o prazer, realizar-se na felicidade, auxiliar a outrem…), mas pelos simples fatos de colocar-se de acordo com a máxima do imperativo categórico. O agir livre e o agir moral; o agir moral é o agir de acordo com o dever; o agir de acordo com o dever é fazer de sua lei subjetiva um princípio de legislação universal, a serem escrita em toda a natureza… se a felicidade existe, trata-se de algo que decorre de uma lei pragmática, segundo a qual é buscada a realização de determinadas atitudes e o alcance de determinados objetos, com o que se encontra a felicidade. ” ([1])
A todos é dado o poder de autogovernar-se de acordo com a observação da máxima do imperativo categórico. O que marca a própria condição de ser humano, neste sentido, é a possibilidade de aliar a faculdade racional ao conceito de domínio de si mesmo. Guiado pelo imperativo categórico, o homem pode governar-se a si próprio e, na relação com o outro, ser impedido de tratá-lo como meio, já que o homem deve ser encarado como um fim em si mesmo.
Seguindo o mesmo modelo, Kant apresenta os pressupostos para a aquisição de um Estado em que todas as nações possam relacionar-se entre si de forma amistosa e pacífica. Inspiradora da ONU, a Paz Perpétua, escrita entre 1795 e 1796, traz recomendações políticas sobre a condução de um governo que pretende ser guiado de modo racional. Indica as cláusulas de um suposto tratado para a manutenção da paz, afirma que é o povo quem manda e dispõe sobre o Estado, sugere a desmilitarização progressiva, condena o abuso e as hostilidades perpetradas numa guerra e determina que “nenhum Estado deve imiscuir-se pela força na constituição e no governo de outro Estado” (KANT, 1992:123). A condição teleológica da história da humanidade é a busca pela paz.
A relação entre os Estados apresenta as diretrizes para a manutenção da paz. Aponta como necessário o estabelecimento de uma constituição civil republicana, garantidora da liberdade, da igualdade e do princípio da legalidade, e fundamentada na concepção de paz perpétua. Sugere que o direito das gentes deve estar fundado numa federação de Estados livres, que originalmente sustenta a concepção da Organização das Nações Unidas (ONU). Defende a “hospitalidade universal”, garantidora do direito de que estrangeiros não sejam tratados com hostilidades fora de seu Estado de origem.
A criação de uma federação no âmbito internacional – que congregue os Estados sem a perda da soberania, de forma a se conquistar a paz perpétua – também está marcada pela presença do imperativo categórico. Portanto, o direito aparece como instrumento primordial na busca pela paz e pela realização plena do projeto de história da humanidade.
([1]) BITTAR, Eduardo Carlos; ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de filosofia do direito. 3. ed. São Paulo: Jurídico Atlas, 2004.