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quinta-feira, 14 de novembro de 2024

Da austeridade à descoberta do poder da gentileza

O canto dos passarinhos na janela do quarto de Ana fez com que ela despertasse.

Ao sentar-se à beira da cama, espreguiçou-se, e ao se levantar e ir em direção à janela, se deparou com a sua rotina matinal diária que se desenhava à sua frente todo santo dia: passarinhos presenteando-a com uma festa particular em seu jardim onde ensaiavam uma cantoria sem fim em seu quintal. Ana recordou-se que por vários momentos desejou se ver livre daqueles pássaros que, de alguma forma, a incomodavam e ela não entendia o motivo de ter tal sentimento, mas nunca tomou nenhuma providência.

Enquanto se arrumava diante do espelho, olhou fixamente para sua imagem e ficou pensativa ao tocar suas marcas de expressão que haviam surgido nos últimos anos. Seu olhar cansado acusava as inúmeras horas de trabalho em que ficava de plantão socorrendo seus pacientes, mas ela nunca se lamentava por isso, pois havia acertado na escolha de sua profissão.

Ao olhar seu estetoscópio ao lado da bolsa, pensou em quantas pessoas ela havia ajudado ao longo dos mais de trinta anos de profissão e, por alguns segundos, uma sensação de dever cumprido tomou conta dela.

Ana era uma mulher de poucos amigos e monossilábica, voltada apenas para a sua profissão com verdadeira ânsia de dar o seu melhor todos os dias, deixou de lado qualquer tipo de aproximação com as pessoas, fossem parentes ou profissionais da área que atuava. Nunca foi arrogante ou algo do gênero, mas sua austeridade com os membros de sua equipe era sua marca registrada o que, naquela manhã, a fez refletir por qual motivo se fechara tanto assim para as pessoas.

Como uma bomba atômica, a resposta veio imediatamente: o assédio sexual sofrido por Ana em seus primeiros anos de residência a fez se fechar em seu mundo. Aquilo tudo foi um marco muito negativo em sua vida, mas, naquela manhã, Ana se questionou porque arrastava aquela lembrança tão dolorosa, uma vez que já haviam se passado mais de vinte e cinco anos e chegou à conclusão de que aquilo não podia mais se perpetuar daquela maneira. Fechando os olhos, Ana desejou passar seus próximos anos de uma forma mais leve e diferente, mas não sabia ao certo como fazê-lo. 

Quando olhou no relógio que marcava sete e meia, se deu conta que aquele dia não era um dia qualquer, afinal de contas era seu aniversário.

“Cinquenta e cinco anos. O que me reserva este dia?”, perguntou-se, enquanto ia em direção ao carro.

Ter chegado aos cinquenta e poucos anos com muito vigor, apesar dos percalços que ela passara há algum tempo quando ficou internada por conta de uma pneumonia que quase a levou desta para uma melhor, a fez repensar muito sobre seu comportamento, mas nada que a fizesse mudar aquele cenário em que vivia.

Quando deu partida no carro, observou que no para-brisa havia um papel dobrado que ela não tinha visto no dia anterior. Desceu do carro e, curiosa, foi ler o que tinha escrito nele:

“Você é responsável por ter e fazer seu dia melhor!”.

A primeira reação que ela teve foi de amassar aquele papel, mas, desamassou e resolveu ler a mensagem novamente e só depois entrou no carro.

Enquanto dirigia, lembrou-se dos últimos anos de sua profissão, o que a fez repensar como queria levar os próximos anos de sua vida. Aquela mensagem no pára-brisa do seu carro só ratificou os seus pensamentos que tivera antes de ler o que estava escrito naquele papel.

Ao analisar sua vida pregressa, não ficou nada contente com os desdobramentos do seu comportamento caxias de todos os dias. Ana sentiu que era o momento de dar uma reviravolta em sua vida e ficou  matutando por onde começar.

Nunca havia parado para pensar como uma simples mensagem como aquela pudesse fazer tanto sentido.

Com um sorriso de canto a canto da boca, Ana olhou para aquele céu sem nenhuma nuvem e agradeceu por aquela mensagem tão singela e simples que a ajudou a cair em si depois de tantos anos.

Dirigindo, ficou desenhando seu dia. Queria que fosse um dia especial, como há muito tempo não tinha. Ela queria mudar aquele cenário que havia construído ao longo dos anos e, ao chegar ao hospital, deu o primeiro passo: cumprimentou cada um de seus colegas de trabalho com carinho no abraço de bom dia que dava a cada um como nunca havia feito antes e, para a surpresa dela o carinho dispensado àquelas pessoas retornou para ela como se a bateria dela fosse recarregada.

É claro que ela percebeu os olhares perdidos de sua equipe de trabalho em relação àquele novo comportamento dela, mas eles foram extremamente receptivos, o que a fez ter certeza de que havia tomado uma decisão acertada.

A cada abraço dado, ela sentia um ambiente muito mais acolhedor e ela se questionou porque demorara tanto tempo para tomar aquela atitude tão simples, mas respeitou os momentos difíceis que vivera.

O dia correu com as peculiaridades de cada atendimento, mas o relacionamento da equipe com Ana foi tão harmônico que quando ela se deu conta já tinha acabado seu expediente.

Ao chegar em sua sala para pegar sua bolsa, Ana foi surpreendida com um buquê de lírios de seus colegas de trabalho com um cartão:

“Estamos felizes por sua nova fase. Seja bem vinda! Feliz Aniversário!”.

Olhando com carinho para aquele cartão, olhou à sua volta e sentiu-se mais segura e em paz consigo.

Ao se despedir de todos, agradeceu, olhando nos olhos de cada um e percebeu que aquele bendito papel em seu para-brisa tinha vindo justamente no momento certo. Um dia incrível foi dado a ela com novas oportunidades de mudança e ela fez sua parte para que aquilo tudo pudesse acontecer.

Patricia Lopes dos Santos
Patricia Lopes dos Santos
Trabalho num Conselho de Fiscalização Profissional há mais de 30 anos, sou Autora do livro "Memórias de uma depressiva", mãe de Sofia, Duda e Átila e me aventuro na escrita, onde me encontro totalmente.

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