Em clara admissão do fracasso da educação municipal em trabalhar coletivamente, junto à comunidade escolar, problemas que afetam diretamente, em boa parte de forma negativa, os resultados pedagógicos esperados nas Unidades escolares, tivemos, no início do mês de fevereiro de 2024, a publicação, pela prefeitura da cidade do Rio de Janeiro, de um decreto proibindo o uso de celular e outros dispositivos eletrônicos em suas unidades escolares, inclusive fora da sala de aula. Segundo a prefeitura, o decreto foi embasado em pesquisas internacionais sobre os malefícios do celular na escola e em consulta pública com a população, onde mais de 80%, dos 10 mil participantes, se mostraram favoráveis à proibição. Parece uma bela iniciativa, não fossem as contradições em relação ao processo ensino-aprendizagem.
As escolas públicas da capital fluminense sempre prezaram, ao menos na teoria, pelo protagonismo dos alunos no processo educacional: eles fazem parte do CEC (Conselho Escola Comunidade) que visa uma administração da Unidade Escolar de forma transparente e participativa; organizam os Grêmios (espaço para discussão e proposição de necessidades do corpo discente); e elegem representantes de turma, já experimentando uma forma política representativa. Mas, a consulta pública realizada para a proibição do uso do celular aconteceu nos meses de dezembro e janeiro. Deve ter sido mera coincidência sua ocorrência do período de férias dos alunos, ou o poder público alijou a participação daqueles que sofreriam diretamente o impacto do decreto. Parece que, neste momento, os alunos protagonistas não têm autonomia e responsabilidade para serem protagonistas. No mínimo, é uma grande contradição.
No site da Secretaria de Educação consta justificativas para a edição de tal decreto, mas chamou atenção a transcrição de uma fala da juíza Vanessa Cavalieri, da Vara da Infância e Juventude, quando afirma, baseada em pesquisas, que “nossas crianças e adolescentes estão adoecidas, estão morrendo por causa de problemas gerados pelo uso dos celulares nas escolas (…)”. Parece que a juíza desconhece a realidade dos alunos das escolas públicas da capital. Parece que as 5 horas que os alunos passam em uma escola são decisivas para sua vida ou morte. Talvez seja melhor ignorar as outras 19 horas em que a sociedade, e, sobretudo, o poder público ignoram o que acontece com nossas novas gerações. Claro que a fala da juíza foi ratificada pelo secretário de educação.
Em relação ao decreto, parece mais uma, das diversas leis, que estão fadadas ao fracasso. Vale lembrar que a cidade do Rio de Janeiro já conta com lei proibindo o uso do celular em sala de aula desde 2008. E mais, a proibição do uso de aparelhos eletrônicos vem justamente no momento em que a prefeitura divulga a implementação dos GET (Ginásio Experimental Tecnológico): nestas unidades o decreto também valerá ou teremos exceções? Há também o GENTE (Ginásio Experimental de Novas Tecnologias Educacionais): será outra exceção? A proibição de uso dos celulares vale inclusive para o horário do recreio. Acho que nem o secretário de educação conhece a realidade das mais de 1.500 escolas que coordena. Querer resolver um problema social e global com uma simples canetada parece não ser algo inteligente para uma administração que se diz comprometida com a educação. Ou será só uma retórica política eleitoreira?
Tentando acalmar os ânimos daqueles que consideram absurdo tal decreto, a lei prevê exceções para o uso dos celulares, dando “autonomia” aos professores e gestores para definirem as possibilidades de “uso pedagógico” desses aparelhos. A punição prevista para o descumprimento do decreto é a advertência e o cerceamento do uso do aparelho. Mas o cerceamento já é o escopo do decreto! Ora, nem em presídios, onde é feito revista de todos que adentram o espaço, o poder público consegue inibir o uso de celulares, será a escola, com sua permanente deficiência de funcionários, que conseguirá fazer valer essa lei com as crianças e adolescentes? Óbvio que não! Outro questionamento que os alunos, com certeza, farão: os professores, diretores e demais funcionários também serão proibidos em usar o celular? O decreto não faz menção sobre isto, até porque os professores são “responsáveis” e não são “viciados” em celular, eles não “adoecem” e não “morrem” pelo uso desse aparelho. Na verdade, os professores serão, mais uma vez, responsabilizados pelo policiamento e cumprimento do decreto. Esqueça a educação, primeiro é o cerceamento daqueles que chegam para estudar em ambientes, muitas vezes insalubres, com salas sem climatização no calor escaldante da cidade, banheiros inadequados e insuficientes para o atendimento das necessidades básicas, falta de espaço para a tal convivência sadia defendida pelos propositores da lei, e permanente falta de professores e profissionais de apoio. Nas situações em que a cidade estiver a partir do Estágio Operacional 3 (quando há pelo menos uma ocorrência de impacto na cidade) ou para seguir o programa Acesso Mais Seguro, também será permitido o uso do celular. Neste caso, em muitas escolas, o decreto não será implementado.
Prevejo um resultado pífio das “boas intenções” do tal decreto. Teremos o professor “gente boa” que sempre fará uso do celular para “uso pedagógico” em suas aulas, teremos a gestão “gente boa” que sempre criará espaços para “uso direcionado” do celular, e teremos professores e gestores “carrascos” por tentarem fazer valer o decreto. Outro resultado esperado é o uso excessivo dos banheiros pelos alunos, não só durante o recreio, mas durante as aulas. Passará a ser o espaço mais concorrido da escola. Ao professor caberá a identificação da real necessidade e decisão na permissão para o aluno fazer uso do banheiro. Em caso de negativa, possivelmente teremos situações em que as necessidades fisiológicas serão feitas na própria sala, afrontando drasticamente a dignidade do aluno e responsabilizando o professor por tamanho constrangimento. Aguardemos o ato normativo da secretaria de educação, regu(lamentando) tal decreto.
Autor:
Prof. Manoel