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sexta-feira, 15 de novembro de 2024

Revoluções

Jesus gastou sandálias divulgando a boa nova e multiplicando peixes, russos se organizaram entre bolcheviques e meneviques em prol da tomada do poder pelos trabalhadores, franceses deceparam a cabeça de Luis XVI numa manhã de domingo e eu parei de roer as unhas. Somos revolucionários mudando o rumo da história.

Preconizo, intuitivamente, que o leitor e a leitora irá fazer pouco caso da minha façanha. Entendo que meu ato possa parecer menor, mas isso é um erro. Estou falando aqui de um dos vícios mais irreprimíveis do Homo Sapiens: a prática de devorar partes do próprio corpo.

O fim da autofagia não foi fácil. Como já tinha as manhas de quem largou o álcool e a cocaína, segui os esquemas dos viciados, sobretudo a máxima de A.A e N.A: “Só por hoje”. Mas minhas táticas de adicto não é o caso aqui. O que me faz escrever essa crônica é o relato de um novo homem. Sim, sou um novo homem!

Depois de inflamações, dor, pus e sangue contornei minha trajetória. Revolucionário, destituí do poder os costumes, o conservadorismo. Pouco a pouco fui erguendo minha autoestima em direção ao progresso. Tomei a coragem que só os machos reformados podem.

Por exemplo, após anos vivendo na precária instabilidade financeira da vida artística, fiz uma entrevista de emprego formal, onde deixei minhas mãos à mostra na mesa do RH enquanto falava das minhas qualidades e defeitos. Hoje estou empregado e, sem dúvida , graças aos meus dedos íntegros que dançavam na mesa da Jessica do RH com unhas inteiras e harmônicas. Eu vi o olhar dela para minhas mãos, certeza isso foi definidor da minha contratação. Ela deve ter pensado “ Um homem controlado, organizado e cuidadoso”. Continuo em ruínas econômicas, mas agora com um salário certo no dia cinco e contribuindo com o INSS.

Com minhas unhas cresceu meu estado de espírito. Me sinto revigorado, refeito. Repito: um novo homem. Fiz duas tatuagens -cobrindo uma que tenho há mais de vinte anos-, passei a ir mais à praia e a puxar assuntos com estranhos na rua, apenas para fazer amizades, cumprimentar com as mãos. Ergo graciosamente copos e taças em celebrações.

Virei melhor informante. Quando me perguntado algum endereço ou ponto de referência ergo o indicador com prazer, apontando a localidade, mesmo que eu não faça ideia de onde seja. E o mais importante: posso brincar com meu filho Benjamin sem as frescuras e cuidados com o medo dele atingir meus dedos em carne viva com seus estabanados movimentos típicos das crianças. Escrevi esse texto que denuncia meu orgulho de vencedor. Para um ansioso grave e depressivo crônico são movimentos gigantes.

Lembrei das lamentações da minha ex-esposa, de que eu não tinha unhas para coçar suas costas. Se ela ler isso aqui irá se arrepender de ter me abandonado. Estou pensando que talvez eu deva vender packs de imagens das minhas mãos, como fazem na internete com pés e partes mais íntimas. Deve haver algum fetiche pra isso. Ou posso virar modelo de anéis. Posso muita coisa, sou um novo homem.

Claro, nem tudo são flores durantes as batalhas épicas. Minhas unhas vivem frequentemente sujas, afinal, agora sou um operário. Também preciso resolver as manchas amarelas dos dedos, resultado dos dois maços de Rothmanns diários – três se for um dia difícil. São detalhes que não causam demérito para um mártir.

A diferença entre russos, franceses , o nazareno e eu é que não estarei nos livros didáticos e sagrados. Minha revolução é só minha e solitária. Atos assim não são contados, como não contam de quem saiu da Cracolândia e voltou pra casa dos pais e comeu um pão e tomou café. Ou da prostituta que se apaixonou e agora passa as madrugadas acordada para dar de mamar a seu bebê num barraco da periferia de Recife. São revoluções só nossas.

Itanhaém, São Paulo.

Autor:

 Ítalo Leite Saraiva Saldanha 

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