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domingo, 17 de novembro de 2024

Uma viagem esquecível

Há quem diga que viagem, mesmo quando dá tudo errado, ainda assim vale a pena. Mas existem viagens que a pessoa quer esquecer a todo custo.

Elzo e Felipa estavam juntos há 5 meses. Ela, escultora pop e de família tradicional, deixou claro que intimidades, só depois de um ano. Ele concluiu o 2o grau em escola meia boca, interrompeu a faculdade fajuta, vive de trambiques e sabe que Felipa sonha conhecer Paris. Sugeriu a viagem para antecipar o rala e rola. Vai que cola! Na Cidade Luz, tudo pode acontecer.

Mesmo dividindo as despesas, o custo será alto. Por isso, ele raspou a conta bancária, trocou o T-Cross 2020 financiado por um Marea Turbo 99, pegou grana com agiotas, porém manteve o hotel de luxo, compatível com as expectativas. Tem tudo para dar certo, mas, diz o ditado, se uma coisa pode dar errado, dará. E deu! A 15 dias da viagem, Felipa terminou com ele e foi viver justamente em Paris, com a estilista Suzy, recém separada de Torpedo, lutador de MMA.

Elzo, desolado, foi à Agência de Viagens para cancelar as reservas. Sophie, com crachá de Supervisora, ouviu a conversa e enxergou a oportunidade. Abordou Elzo, disse que quer conhecer Paris, que é a substituta ideal para a ex-namorada traíra e ele poderá se vingar da vadia. Elzo examinou Sophie de alto a baixo. É bonita, simpática e garante que não tem frescura com intimidade. Selaram o acordo em minutos. Felipa pagaria metade das despesas, mas Elzo ficou sem jeito de pedir à Sophie para rachar a conta. Ele ia perder toda a grana mesmo!

Sophie mudou-se para o apê de Elzo para melhor se conhecerem. A moça tem hábitos estranhos e respira como um gato com sinusite, mas ele ignorou tudo porque ela garantiu zero frescura em Paris. Geralmente, visto de perto, todo mundo é estranho. Pessoas normais são somente aquelas que ainda não conhecemos bem.

Os problemas começaram há 10 dias do embarque. As 1, 2, 3 Milhas faliu, desapareceu, escafedeu-se. Para não perder tudo, nem a chance de se vingar de Felipa, Elzo comprou outras passagens, mais caras, em 12 parcelas, em voo pinga-pinga, com duas escalas, longas esperas e troca de aeronave, dobrando o tempo de viagem. Se o piloto visse alguém dando sinal, pousava para pegar o passageiro.

Elzo foi barrado no embarque por causa de um canivete na mochila. Disse que era para descascar frutas, mas teve de deixar o objeto e 4 laranjas. Chegaram com um dia de atraso e duas malas extraviadas. Após horas preenchendo os papéis no balcão de reclamações, foram para o hotel de trem, mas para o destino errado. Tomaram um taxi e rodaram muito. No hotel, felizmente alguém falava português.

  • O senhor era esperado ontem, mas 24 horas de atraso é “no show”.
  • Eu não vou a nenhum show – respondeu o sonolento Elzo.
  • “No show” significa que o senhor não se apresentou. Seu quarto foi dado a outro hóspede e o hotel está “sold out”.
  • O hotel está com saudade do quê?
  • Senhor, “sold out” quer dizer totalmente vendido, sem vagas. Mas não se preocupe. Vou ver se consigo um quarto em outro hotel da rede.

O outro hotel é longe de tudo, quase fora da cidade e o quarto tão pequeno que parecia um closet. Eles deixaram as malas no quarto e foram jantar num bistrô. Elzo leu o menu e pediu peixe, misturando francês com português:

  • Je vou querer poison.
  • Mais pourquoi monsieur? La vie est belle!

O garçom senegalês trabalhou em navio de Cruzeiro e fala português. Disse   que “poison” (puazon) é veneno. Peixe é “poisson” (puassom), com 2 “s”, pronúncia parecida. O fraco francês de Sophie não ajudou. O garçom explicou os pratos em bom português eles optaram pelo peixe mesmo. Elzo queria voltar logo para o hotel para consumar o ato, porém o peixe deu revertério e ambos tiveram cólicas a noite toda.

No dia seguinte foram conhecer a cidade. Perderam-se, roubaram a carteira de Elzo no metrô, Sophie entrou em todas as lojas de perfume e lingerie e a diarreia reapareceu. Voltaram ao hotel e passaram a tarde entre a cama e o trono. Sophie queria conhecer o Louvre, mas Elzo não quer ver a Vênus DeMillus sem braços. Ainda não consertaram? Sophie conferiu o nome da obra: Vênus de Milo. DeMillus é a lingerie e disso ela entende. Elzo disse que quer conhecer os castelos do Vale do Loire.

  • Vamos dormir um pouco mais. Faltam 12 horas para o “luar”.
  • O guia diz que “luar” é como se pronuncia “Loire”, o nome do rio! Você tem certeza que fala francês?
  • Falo sim, mas minha especialidade são marcas de perfume e lingerie.

O Smart alugado é tão velho quanto o Marea Turbo e o GPS só fala francês. Elzo não conseguiu mudar o idioma e Sophie não entende as falas da máquina. Devolveram o carro, foram almoçar e encontraram Felipa, Suzy e Torpedo no bistrô. O lutador, que parece um ogro com enfisema pulmonar, achegou-se e convidou Sophie para morar com ele em Paris. Após perder mais uma namorada, Elzo soube que Sofie não era supervisora na Agência de Viagens, mas no Via Cabaré, onde Torpedo era Segurança. Elzo decidiu antecipar o retorno ao Brasil.

O voo para São Paulo foi ótimo. Elzo conheceu Brenda, a bela e simpática morena da poltrona ao lado. Durante a viagem rolaram amassos, juras de amor e beijos apaixonados. Desta vez vai dar certo, pensou. Minutos antes do pouso, a chefe da cabine anunciou que encontrou o cartão de embarque de Ambrósio Xavier. Brenda acenou e a comissária lhe entregou o cartão.

  • Você conhece o dono desse cartão?
  • Sim, sou eu. Brenda é meu nome social.

Elzo teve enjoo e foi escovar os dentes pensando nas 12 prestações a pagar e no Marea Turbo. Tem viagem que é mesmo para esquecer!

Laerte Temple
Laerte Temple
Administrador, advogado, mestre, doutor, professor universitário aposentado. Autor de Humor na Quarentena (Kindle) e Todos a Bordo (Kindle)

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