“Lar não é onde você nasce, mas onde cessam todas as suas tentativas de fuga.” Naguib Mahfouz
Era uma manhã bem quente e eu andava por East Harlem, bairro latino de Nova York, também conhecido como El Barrio. Lá a cultura de grafite é muito importante. Há um projeto chamado “Los muros hablan” que promove a pintura a céu aberto.
Me chamou a atenção uma parede branca, alta, onde estava escrito com letras vermelhas: “Estoy más preparado para un procedimiento quirúrgico que para el exilio”. Li a frase andando devagar até que resolvi voltar um pouco e fiquei mudo, olhando (não lendo) a frase. Senti uma tontura solta na cabeça, um aperto no peito, uma sensação de medo, uma solidão mal resolvida. O pior que existe é ter que abandonar a pátria, é o primeiro que a gente aprende fora de casa. A dor começa a procurar endereço próprio no corpo, na alma e no coração. Caetano Veloso, quando esteve exilado em Londres, disse que “não tinha forças nem para esboçar um gesto livre”.
Na tentativa de me recuperar do choque provocado pela frase, não notei que do meu lado um senhor me observava, até ouvir uma voz calma dizendo “buenos días”. Amável, respondi com um sorriso.
Ele se apresentou, chamava-se Toño, guatemalteco. Apertei a mão dele e comentei que um dos meus cantores preferidos é Ricardo Arjona. Por coincidência o meu novo amigo e o Arjona nasceram na mesma cidade: Jocotenango. Toño começou a se emocionar e confessou que nos Estados Unidos deixou de comprar música. Quando saímos do nosso país as memórias ficam inacabadas, afirmei. Concordamos tomar um café juntos e entramos num bar muito aconchegante. Pedi feijão e Coca. Toño foi de cerveja e tortilla.
Logo perguntou, com certa ansiedade, por que a frase escrita no muro me chamou tanto a atenção. Respondi que não só me chamou a atenção como também me impressionou, me machucou e me confrontou com a realidade. Longe de casa é impossível resistir aos desastres cotidianos, disse Toño. Quanto mais tempo levamos sem regressar, tudo que temos no nosso interior parece corresponder a outra pessoa. Manter a identidade é um difícil exercício de apropriação. Fora do nosso país somos o que podemos ser, nunca o que queremos. Parte da nossa vida é roubada. Quem é obrigado a abandonar a pátria perde tudo e passa a ser apenas nômade, concluí. Toño começou a chorar… eu também.
O bar estava vazio e o dono puxou uma cadeira e sentou na nossa mesa. Chamava-se Ramirez Ochoa, natural de Holguín, Cuba. Estava havia quinze anos nos Estados Unidos, primeiro Texas e agora Nova York. Comprou o bar, trabalhou bastante, fez muitas dívidas, mas venceu. Começou a contar a “sua” história, no fundo a minha história também, a do Toño e de milhões de Ochoas, Toños, Noppeneys…
Ochoa falou muito: de Cuba, da infância feliz, dos amigos, dos sonhos desfeitos, da saudade eterna. Chorou, deu risada, ficou melancólico, triste e alegre. Está provado que migrar, especialmente de maneira forçada, provoca impacto sobre a saúde mental. As adversidades da migração podem aumentar o risco de desenvolver transtornos psiquiátricos. Naquele momento me senti mal, muito mal, o coração começou a palpitar e me deu vontade de sair correndo. De repente o meu novo amigo cubano olhou para mim e disse que eu era um privilegiado. Como assim?, perguntei. Toño e eu somos estrangeiros, mas você é turista! Turista é gente fina, murmurou.
Fiquei confuso. Diante do comentário absurdo, querendo esclarecer as coisas, rapidamente disse que fazia tempo não morava mais em São Paulo, nem no Brasil. Estou morando na Europa. Toño colocou as mãos na cabeça e exclamou: Coño! E completou, fitando-me com os dois olhos grandes arregalados: Então você não é um privilegiado. Eu, como poeta que sou, respondi simplesmente: Privilegiado não, azarado sim.
Ochoa, que esteve calado o tempo todo, bebeu o resto da cerveja e contou que passou seis meses na Europa. Chegou à conclusão de que é um continente com um repertório diferente de tudo. Em muitos países europeus existem normas absurdas, uma quebra absoluta de referências, o ar que se respira é angustiante e o susto constante. “Qualquer lugar que não seja o nosso país, a nossa cidade, é sempre absurdo…”, resumi.
Toño decidiu voltar para a Guatemala. Ochoa decidiu voltar para Holguin. E eu decidi voltar para São Paulo.
Autor:
Heriberto Noppeney