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terça-feira, 18 de junho de 2024

As duas faces

A tarde vermelho sangue; cor que queima pele, e aquece seu rosto ao meu. Encaro o lago dourado e investigo as rugas que já se insinuam; já não somos tão jovens.

Sua voz se tornou um soluço amargo, como seu gosto amargo de café. Hoje minha face ambígua pôs a crer que estivera comigo.

“Vamos querida, prepare meu café. Tenho que ir ao encontro dos patrões”.

A lúcida por outro lado observou a fundo e se envolveu à lápide do seu marido que não via há anos.

Esteve no seu funeral atrás de uma árvore, longe da vista; observando seu corpo chegar ao teto do caixão. Nem sequer depositou flores em cima do gramado, apenas as mais sinceras lágrimas e contas que deixara antes de pagar. A outra se conteve, apenas sussurrava baixinho: “ não vá embora…não de novo”.

A lúcida deixou de sofrer rápido; acordava cedo, e diante da penteadeira ela se limpava e, indecente, vestia o espartilho preto e passava seu batom extremamente vermelho, enquanto um velho qualquer estava a espera sob um dossel.

E aquela mais sensível, quando acordava antes da outra, nem sequer saia da cama. “ Esse é seu lado da cama” – Ela dizia a seu marido morto, a quem via quando se embriagava com whisky. -”Querido, foi tão cedo”.

O rosto dele voltava ao seu. Na cama, no lado esquerdo.Ela o toca no rosto.

É real – Carlos – Repete imatura, prendendo o nome na língua embriagada na ilusão de prender também o amante, sem que ele volte.

Você está cega?! Está surda?Ele foi sorrateiro. Eu retornei pra você, apenas por você;e está me odiando? Creio que não somos mais tão bela quanto antes.

E essa minha face que escrevo agora, abafou os gritos da outra com uma força inaudita. Porque gritas? Não sou de me julgar tão poderosa. Sou uma amante que chora sua sina, muitas vezes calada; um fantasma que caminha para longe de seu fim.Você não aceita mas ainda o amo como na primeira vez indecente, além da vida e da morte.

E sem que eu, a atual, pudesse requisitar o meu corpo, saímos para uma valsa além da balaustrada; onde os corpos que voam beijam as pedras da rua.

Autora:

Marcela Moreira Silveira

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