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quarta-feira, 30 de outubro de 2024

 A Benção Sacerdotal

Era uma tarde de Páscoa. Eu estava com fome no púlpito da sinagoga, havia pelo menos 10 famílias comigo. Nesse momento vi, sem esperar por isso, os homens se cobrindo com seus xales de oração, seus filhos se abrigavam debaixo deles.

Da multidão saiu um senhor de idade, muito muito velho, Senhor Saadia, foi para a arca da congregação, se cobriu com seu xale, ergueu suas mãos e começou a cantar. Sua voz ecoou pelo templo, melodiosa era a reza, passada de geração em geração desde os dias do Templo de Salomão até hoje. Era impossível ouvir o brado sagrado do senhorzinho sem se imaginar nos bons e velhos tempos, onde todo o povo se abrigava em Jerusalém como em um enorme xale de orações.

Senhor Saadia é um sacerdote do Marrocos, nascido lá. Meu bisavô também, João Moreno, sacerdote judeu-marroquino, de pele escura como a noite e com olhos verdes como a primavera. É dito que os judeus do Marrocos remontavam o tempo do Rei Salomão, foram levados para lá como comerciantes em frotas navais dos fenícios, navegadores incrivelmente ágeis que teriam chegado até mesmo a costa fluminense em seus navios, mas depois uma outra leva de judeus da Espanha teria vindo ao Marrocos, na Inquisição. Parte dos judeus espanhóis foi resgatada pelo Sultão Bayezid e trazidos em segurança para a Turquia—Deus ainda há de recompensar os turcos por isso. Outra leva, os mais ricos, simplesmente se mudaram para Portugal e continuaram suas vidas de empresários e inventores no país vizinho, sem saber que a Inquisição Portuguesa seria ainda mais cruel com eles. Uma leva menor e mais pobre não pode se refugiar em nenhum dos dois cantos, então montaram jangadinha e foram nadando pro Marrocos. Eu diria que o Senhor Saadia é tão velho que poderia facilmente ter sido um dos refugiados nas jangadinhas, teria visto o fogo sanguinário dos inquisidores, teria sentido o vento tempestuoso do Mar Mediterrâneo e sem dúvidas teria contemplado o calor monumental do deserto africano.

Eu poderia dizer que via as letrinhas mágicas saindo da mão do cohen, alef-beit-guimel…

“Que a Eternidade te abençoe e te guarde”

Os pais protegiam seus filhos debaixo de seus xales de oração enquanto as mulheres eram protegidas pelo próprio Deus em seu compartimento próprio. Por outro lado fiquei sozinho, no recinto dos homens sem pai ou mestre para me cobrir no xale. O sentimento de solidão e desamparo ardentes que remontam meu próprio pai. Meu pai, imprevisível como um demiurgo, sua presença me assustava quando criança como uma tempestade na floresta, sua voz como um trovão me chacoalhava em meus instintos infantis mais primitivos. Ele nunca me cobriu com seu xale, duvido que ele ainda tenha um guardado. Imagino que, na verdade, o último xale de rezas da minha família esteja escondido em um porão na Rússia ou que tenha sido reduzindo as cinzas na Polônia, nos tempos mais sombrios da humanidade.

“Que a Eternidade resplandeça Seu rosto sobre ti e tenha misericórdia de você”

Misericórdia. Talvez a coisa que eu mais tenha ansiado na minha vida. Meu coração está intacto, mesmo que pesado e acelerado. Intacto. Enquanto lembro das letrinhas mágicas saindo das mãos do ancião naquela forma de mostrar as mãos, com os dedos juntos, fazendo um shin (ש).
Shin é uma letra que demanda atenção no hebraico. Seu valor numérico é 300, como os três portões nos Céus, onde o mais elevado deles está aberto o tempo todo: O portão das lágrimas, por onde os povos sofridos derramam suas preces ao seu Criador, e Ele chora junto. Há de chegar o dia em que meu pobre coração caótico há de sentir a Presença da Eternidade sobre mim, como uma mãe protegendo a prole, como um pai agrupando os filhos debaixo do xale de rezas em um dia santo. Há de chegar meu dia. Meu dia de vivenciar a paz.

“Que a Eternidade levante sobre Ti o rosto e te conceda a paz”.

Autor:

Daniel Schultz 

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