ROTINA
Mais uma manhã entre todas as manhãs. Tomo meu café, arrumo minha mochila e saio de casa rumo à faculdade. A televisão, desligada e acumulando poeira, não traz suas cores e sons ao meu dia. Não sinto falta. Caminhada até o ponto, ônibus cheio e o smartphone sempre ao alcance das mãos. Não sou o único. Olhos grudados nas telas. Hoje a briga não é mais para ir ao lado da janela. Por que seria, se o mundo está ao alcance das mãos? No caminho fico sabendo da crise econômica no país em poucos caracteres. Interessante. Parece fazer sentido quando me lembro do valor da passagem e o quanto ela pesa em meu orçamento. Chegando na universidade vejo os colegas discutindo economia na cantina. Tema: a inflação nos preços dos salgados. Cito a notícia em meu argumento tentando justificar os valores. Foi um passarinho que me contou no caminho. A discussão acaba, tempo livre até a próxima aula.
Dedos deslizando para esquerda, para a direita, para cima, para baixo. Não, não é uma dança, mas talvez sejam os passos mais característicos da última década. Já notaram que as crianças de hoje aprendem esses passos antes mesmo de andar? Uma descoberta. Mais uma descoberta: o governo anuncia corte de verbas na educação. Como eu ou qualquer pessoa pode escrever um artigo sobre o absurdo da decisão se não nos oferecem as ferramentas para isso? Tirar para calar, faz sentido. Vou para a aula e o professor aborda o tema em tom de lamento. O burburinho cresce, a discussão aumenta, a pauta da aula se transforma em minutos. O tom muda. Revolta. Se não fosse meu amigo Zuckerberg ter me contado no intervalo ficaria mais perdido do que adolescente sem wi-fi. Boa Zuck. Passada a discussão a aula volta a sua programação normal. Teorias, autores, fórmulas. Tic-tac. Mais autores e mais fórmulas. Tic-tac. Chega o momento do adeus. Chega o momento do reencontro, mais uma vez no ônibus e mais uma vez com o smartphone nas mãos. Qual o rosto da pessoa que passou minutos sentada ao meu lado no caminho? Boa pergunta, na próxima viagem vou reparar.
Cansado, esgotado, precisando de uma boa notícia para me animar. E não é que ela veio? Contratação bombástica do meu time. A pauta na cantina no dia seguinte, certeza. Preciso me preparar. Tempo de contrato, valores, detalhes da negociação, opiniões… fico sabendo de tudo. Quando resolvo olhar para a janela, surpresa: cheguei no meu ponto. Guardo o celular e me levanto rapidamente. Sorte, consigo descer a tempo. Chego em casa. Passo pela porta da sala pensando em me livrar o mais rápido possível da mochila, mas um chamado me faz parar. No escuro vejo apenas as luzes da televisão. Meu avô, no canto, acena para chamar minha atenção.
-Você não vai acreditar. O Flamengo contratou aquele alemão que arrebentou na copa.
-O Gotze? Ah vô eu já…
-Senta aí, o jornal já vai começar. Passou na propaganda que eles vão falar sobre isso.
Me sento para não fazer desfeita. O que ganharia tirando o prazer de compartilhar o momento da notícia com ele? Imaginei quanto tempo ele estava ali, com os olhos vidrados na televisão, aguardando. Por décadas, essa foi a realidade dele e de muitas pessoas, há quase uma década, não é a minha. Qual é melhor? Eu devo dizer que é a minha, ele deve dizer que é a dele. Um bloco. Previsão do tempo. Outro bloco, três notícias que já vi. Não me lembrava o quão estranho era, parece assistir a um filme repetido. Chega o momento aguardado. Assistimos, comemoramos, debatemos, e pelo maior período de tempo no dia me esqueço daquela tela que carrega o mundo. Como é mesmo o nome? Deve ser o cansaço. Ao apagar das luzes me vem uma última reflexão. Tempo: artigo raro e valioso que me faz correr enquanto me informo. Meu avô, na sala ao lado, se informa enquanto relaxa. Vias distintas para o mesmo destino. Melhor descansar, afinal, a luta recomeça ao amanhecer.
Mais uma manhã entre todas as manhãs. Tomo meu café, arrumo minha mochila e saio de casa rumo à faculdade. A televisão, desligada e acumulando poeira, não traz suas cores e sons ao meu dia. Não sinto falta…
Autor:
Flavyo Daniel