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quarta-feira, 24 de julho de 2024

Walküren – As Três Marias

Capítulo Vinte e Cinco

A noite estava alta, ainda. Os mateiros caminhavam devagar, sem fazer muito barulho. Na verdade, os mais incautos não tinham como perceber seu avanço mata adentro. Eram tão silenciosos quanto uma onça pintada… e muito, mas muito mais perigosos para suas presas. Eram cinco os aventureiros… Cornélio, Manoel, Bueno, Gaspar e Gonçalves. Faziam parte da expedição comandada por Fernão Dias. Sua missão… avaliar a tribo de aborígenes que estava a pouco mais de uma légua de distância do acampamento dos desbravadores… e ver a possibilidade de aprisioná-los para os vender na próxima província como escravos… porque precisavam avaliar a tribo? Bem, nem sempre valia a pena atacar um aglomerado de ocas… algumas vezes o número de idosos era grande, e aí o valor de mercado das peças não compensava o risco. Mas se houvessem muitos jovens… braços fortes para a lavoura… bem, então era justificado o ataque, mas de uma maneira que houvesse o mínimo de baixa entre os silvícolas, de preferência só entre aqueles que não teriam serventia para o grupo… a preferência era por crianças e jovens, que estivessem entrando na puberdade… seriam mais fáceis de domar. Homens e mulheres já formados, desde que ainda jovens, também serviam. O resto, poderia ser descartado, pois realmente ninguém iria querer comprá-los…

Os cinco se espalharam, para melhor avaliar a situação. Pelo que perceberam, era um grupo que valeria a pena capturar. Enquanto um dos componentes do grupo voltava até seu acampamento, o restante permanecia de guarda no local, para orientarem os companheiros quando chegassem… sim, o plano já estava traçado. Iriam atacar a aldeia antes mesmo do dia clarear. Seria muito mais simples surpreender os selvagens quando ainda estivessem dormentes. Não demorou muito e o grupo de Fernão já estava a postos, esperando apenas as ordens de seu líder para começar o ataque. Foram orientados para exterminar todos aqueles que não tivessem utilidade para o grupo. A sombra da morte se abateria sobre aquele povoado. A plantação de mandioca ficaria manchada de sangue. Nunca mais aquelas pessoas voltariam a tomar seu cauim…

– Foi assim que teu avô te contou essa história, Matilde?

– Sim, esse é o início, delegado… o senhor quer ouvir o restante dela?

– Sim, claro… mas eu já sei de antemão o que aconteceu com aquele povoado. Os jovens capturados, os adultos e idosos, exterminados… afinal, mortos não podem se vingar, não é mesmo?

– Bem… quando uma dívida de sangue é alta, os mortos se vingam, sim.

– Foi o que aconteceu?

– Pelo menos era o que meu avô contava para nós… ele disse que, depois do ataque à aldeia, e por muito tempo, a tragédia acompanhou aquele grupo.

– Que tipo de tragédia?

– Segundo suas palavras, Anhangá começou a perseguir e exterminar o grupo…

– E era um grupo pequeno?

– As bandeiras nunca eram grupos pequenos… geralmente tinham três, quatro mil homens para desbravar o sertão…

– E agiam contra suas caças…

– Isso. Eles preferiam atacar as missões, os aldeamentos onde os padres já haviam ensinado os índios a cuidarem da lavoura… como se eles nunca tivessem feito isso antes, na vida…

– Acho que não era bem por isso que preferiam os índios catequizados, não é mesmo?

– Claro que não… o índio “civilizado” era facilmente dominado pelos caçadores e quase nunca se rebelava contra o jugo imposto…

– O que significa que nem sempre era assim, não é mesmo?

– Claro. A liberdade era uma coisa essencial para o gentio da terra. Mas aqueles que haviam sido batizados… bem, estes eram presa fácil para os bandeirantes.

– Essa história que você estava contando… o que aconteceu com as pessoas da tribo?

– Bem, apesar de sonolentos, quando foram atacados, eles reagiram. Arco e flecha, tacape, borduna… inclusive os pequenos também partiram para a luta contra os invasores… foi uma carnificina. No final, baixas dos dois lados e nenhum índio capturado… e a praga do pajé sobre a cabeça do líder do grupo…

– Que era o Fernão Dias…

– Que era o Fernão Dias. Claro que ele não ligou muito para a praga rogada… afinal, quem vive atacando as pessoas, sempre tem uma ou duas pragas sobre sua cabeça…

– Mas essa se cumpriu…

– Sim… o senhor é um pouco impaciente, não é mesmo?

– Desculpa, moça… é que estou num angu de caroço e acho que sua história poderá me ajudar a entender o que está se passando…

– Bem, eles levaram uns dois anos para chegarem em seu destino final. Mas boa parte da tropa ficou pelo caminho…

– Por que?

– Porque ele começou a persegui-los… e matá-los!

– E como ele fazia isso?

– Segundo meu avô, atacando suas vítimas e dilacerando seu pescoço…

Um sinal de alerta se acendeu na mente de Juvêncio… o demônio dilacerava o pescoço de suas vítimas… será que…

– Então ele mordia o pescoço das vítimas…

– Não delegado… ele quase arrancava a cabeça da vítima…  e não deixava nenhum rastro de sangue para trás…

Juvêncio quase deu um pulo do banco onde estava sentado… e não é que havia finalmente encontrado uma história antiga que tinha alguma coisa em comum com os ataques sofridos na região? Claro, no caso eram os índios a causa primordial… mas… bem, era uma força mística, como ele desconfiara. Agora era só descobrir quem a havia acionado…

O fato de os ataques do passado serem associados aos indígenas não queria dizer que eles eram, realmente, o fio condutor do evento. Havia mil e uma explicações, nenhuma que fizesse sentido no momento. Mas, com certeza, ele conseguiria descobrir as relações que deveriam existir. De qualquer forma essa era uma história que ele nunca tinha ouvido antes… pelo que aprendeu, Anhangá defendia os animais da floresta contra os caçadores… era a primeira vez que ouvia dizer que o ente místico atacava um grupo de pessoas para cobrar uma dívida de sangue…. vivendo e aprendendo!

A tarde estava gostosa, uma brisa fresca soprava pela praça, onde os dois conversavam. O sol estava baixando no poente, com aquela preguiça característica de um dia de temperatura amena. Por estar uma temperatura agradável e não ser um dia de aula, Juvêncio preferiu se encontrar com a diretora em um lugar público, para não dar espaço a mal entendido entre as pessoas… só se esqueceu que a praça normalmente é o lugar em que os namorados costumam se encontrar… e com certeza, algum comentário as pessoas iriam fazer, já que os dois eram solteiros e estavam sentados ali, um ao lado do outro, praticamente o dia todo…

Tania Miranda
Tania Miranda
Trabalho na Secretaria de Estado de Educação do Estado de São Paulo e minha função é "Agente de Organização Escolar", embora no momento esteja emprestada para o TRE-SP, onde exerço a função de "Auxiliar Cartorário". Adoro escrever, e no momento (maio de 2023) estou publicando meu primeiro livro pela Editora Versiprosa...

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