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sexta-feira, 30 de agosto de 2024

Walküren – As Três Marias

Capítulo Dezesseis

Graça passava em frente do Largo dos Curros, onde acontecia naquele momento uma apresentação de um famoso toureiro vindo do sul, Francisco Pontes. Ela não entendia como as pessoas podiam ter apreço por aquele espetáculo degradante. Afinal, qual era a graça de ver o pobre animal correr de um lado ao outro da arena e ser espetado a todo instante pelo picadores, e aguardar a estocada final, vinda pelas mãos do astro principal?  Não, aquilo não podia ser chamado de “espetáculo”… mas a massa adorava os voleios do toureiro, sem dúvida. Os gritos de “olé” podiam ser ouvidos quase que do outro quarteirão… 

Graça foi a uma tourada uma vez, logo que chegou à Capital. Sua mãe estava ainda internada na Santa Casa. Ela imaginou, a princípio, que fosse um espetáculo similar aos rodeios que estava acostumada no interior. Nunca lhe passou pela cabeça que aquele local fechado servia como um matadouro de luxo, visto que dificilmente o touro saia vivo da apresentação. E as pessoas gritavam excitadas, querendo mais e mais… elas gostavam do cheiro do sangue expelido pelo animal… e dos malabarismos feitos não só pelo toureiro, enquanto castigava o animal como também sua equipe de retaguarda…. ou seja, o pobre animal não tinha nenhuma chance nessa luta… sim, Graça já havia lutado com touros, pego alguns a unha… mas o contexto era outro. Também já matara algumas reses, mas uma arena? Onde as pessoas pagavam para ver o animal sofrer?  Ela não conseguia entender isso… Quando o segundo touro da apresentação foi sacrificado na arena, Graça não aguentou continuar assistindo o espetáculo e levantou-se de seu lugar, indo embora. Nunca mais entrou em outro circo daquela natureza.

Ela atravessou o local o mais rápido que pôde, em direção ao largo do São Bento, para pegar o bonde que ia para sua casa, na Barra Funda… nome engraçado para um bairro novo, não é mesmo? Bem, o motivo da região ganhar esse nome se devia ao fato de a barra do Rio Tietê ser muito funda… O bairro crescia a olhos vistos… desde que ela comprara seu terreno e construíra sua casa no local, novas casas foram sendo levantadas e estavam instalando industrias na região. A São Paulo Railway realmente fez muito bem para a região, ao trazer seus trilhos até ali…

Fazia pouco mais de uma década que a República fora instalada no País. Ela não podia dizer com sinceridade que houve grandes mudanças na administração do país. Mas que o progresso, de certa forma, estava chegando… bem, é claro que na época do Imperador as coisas avançavam, também… mas era como se o povo não participasse dos avanços do País, pois tudo o que acontecia era por obra e graça da Família Real, mesmo que tal coisa não fosse fato. Por exemplo, a abolição da escravidão… a Coroa reivindicava para si o fato de haver extinto tal bizarrice… o domínio de um ser humano sobre o outro… mas na verdade, quando ela tinha doze anos o Estado do Ceará libertou seus escravos. E no ano em que Dona Isabel recebeu os créditos por assinar a Lei Áurea, várias cidades, de várias partes do país já tinham liberto seus cativos. Ela tinha dezesseis anos quando, dois meses antes do anuncio oficial da Coroa, os fazendeiros da sua região libertaram os desvalidos que tinham sob sua guarda e passaram a remunerá-los por seus serviços…. ou seja, na verdade a Realeza apenas tornou oficial algo que estava acontecendo pouco a pouco… o mundo estava mudando…

É claro que nem tudo eram flores. Muitos negros acabaram por ficar sem recursos… afinal, até então não recebiam nada por seus serviços, mas tinham um abrigo e alimentação, mesmo que parca. Depois que receberam a tão sonhada liberdade, toda a despesa que tivessem sairia de seus bolsos. Casa, comida, roupas… remédios. Sim, era uma nova realidade que os ex-escravos enfrentavam. E nem todos se deram bem. Sem contar o preconceito que sofriam por alguns elementos da sociedade… veja bem, nem todos  eram preconceituosos em relação à nova classe social vigente… os recém-libertos… mas sempre tem um espírito de porco para estragar tudo, não é mesmo? E, logicamente, alguns acabaram se enveredando para o mundo do crime. Porque não iriam? Afinal, alguns coronéis tiraram tudo desse povo…. seu orgulho, suas raízes… sua identidade!

Um dos casos mais famosos que Graça se recordava era de um negro forro chamado Rio Negro. Tinha esse nome porque viera de uma cidadezinha do Paraná com esse mesmo nome. Ninguém sabia exatamente o motivo… mas Rio Negro tinha um ódio por todas as pessoas que não tivessem o mesmo tom de sua pele. E por algum tempo aterrorizou a região do Vale, saqueando pequenos sítios, roubando gado, estuprando as mulheres que dessem o azar de estar no local em que ele estivesse atacando. Sim, foi uma época realmente obscura. Rio Negro se sentia tão onipotente que chegou um momento em que já não se importava que as pessoas soubessem de seus desmandos… e um dia resolveu atacar um dos muitos sitiantes da região. Por algum motivo ele sentia-se atraído pela esposa do sitiante, chamado de Zé Leite. A morena era realmente bonita… tez acobreada, cabelo negro como a noite sem lua… olhos de uma intensidade sem par. E Rio Negro raptou a morena. Quando Zé Leite ficou sabendo do ocorrido, quase ficou louco… mas conseguiu se controlar. Pegou suas armas, reuniu alguns amigos para ajudá-lo a bater a pista do bandoleiro e lá foram eles, à caça do raptor da moça. 

O encontraram escondido em uma cabana próxima da serra. Depois que gritaram para Rio Negro, avisando-o que estava cercado e que só sairia dali se devolvesse a moça raptada, sabendo que seria preso…. Rio Negro começou a atirar contra o grupo, que revidou. Quitéria (era esse o nome da esposa de Zé Leite), ao ver o fogo se espalhando, tratou de se proteger o melhor que pôde. Depois de alguns minutos, que pareceram horas, Rio Negro foi atingido por alguns disparos… e o terror da região deixou de existir. 

Quantos anos Graça tinha quando aconteceu esse caso? Uns seis, sete anos…  ainda era criança. Mas se lembrava do pavor das pessoas  quando mencionavam o nome de Rio Negro, e a sensação de alívio que todos sentiram quando foi confirmada a morte deste. Algum tempo depois o mascarado apareceu na região e expulsou outros bandidos que ainda estavam por ali. Foi seu primeiro contato com Juvêncio… engraçado, ela tinha se esquecido desse detalhe…. e agora, sem mais nem menos…

Tania Miranda
Tania Miranda
Trabalho na Secretaria de Estado de Educação do Estado de São Paulo e minha função é "Agente de Organização Escolar", embora no momento esteja emprestada para o TRE-SP, onde exerço a função de "Auxiliar Cartorário". Adoro escrever, e no momento (maio de 2023) estou publicando meu primeiro livro pela Editora Versiprosa...

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