20.2 C
São Paulo
segunda-feira, 18 de novembro de 2024

Reviravolta

Certamente, você já ouviu o provérbio português que diz: “não há bem que sempre dure, nem mal que nunca se acabe”. Pois bem, foi o que ocorreu quando soube da guinada de vida do Groselha. Tudo começou quando o padre pediu a ele que deixasse a missa, pois estava causando interferência no microfone da igreja. Nunca soubemos o motivo, mas às vezes isso ocorria mesmo, e bastava ele deixar o recinto para o equipamento voltar ao normal.

Sempre solícito e resignado, saiu pela porta da frente, e encontrando um senhor maltrapilho que esmolava nos degraus da igreja, deu-lhe o que tinha no bolso. O sujeito não agradeceu, mas disse-lhe: “sua sorte mudará”. Seria pelo menos a milésima vez que ele ouvia isso porque sempre fora bondoso e todos que o conheciam torciam por ele, assim não deu importância ao que ouvira, até porque nunca se considerou uma pessoa infeliz. Ao contrário!

No trajeto para casa Groselha encontrou uma carteira caída na rua. Não continha dinheiro, mas documentos e o endereço da pessoa que a perdera (provando, inclusive, que não era apenas com ele que esses episódios ocorriam). Sabia onde ficava a rua, e foi direto devolvê-la. Muito agradecido o homem insistiu para recompensá-lo, mas não aceitou. No entanto, foi convencido a ficar como gratidão, com um número de rifa (o único que não fora vendido) de um clube do qual o homem era presidente.

O prêmio era um veículo zero KM, e a milhar uma desanimadora combinação de cinco zeros, mas ele não estava mesmo atrás de compensações por haver feito o certo. Até se lembrou naquele momento das palavras do pedinte, mas novamente não deu importância àquilo.

A extração da loteria era naquela mesma noite, e o improvável (contrariando todas as regras da natureza, todos os mistérios sobre sorte, destino, acaso, coincidência, leis de causa e efeito, etc.) aconteceu: o prêmio foi para as mãos do Groselha, avisado por telefone pelo próprio dono da carteira.

Chegando em casa, deu a boa notícia para a família (que acreditaria somente muito tempo depois), e por hábito foi conferir como fazia a várias décadas um bilhete de loteria que havia comprado “fechado” (desses que vêm num envelope lacrado e o comprador desconhece a numeração). Até então jamais havia ganho qualquer prêmio, mesmo em figurinhas. Aliás, sempre que seu nome era visto nalgum “bolão”, mais ninguém queria participar.

E não é que o bilhete continha exatamente a mesma (e improvável) numeração da rifa??? Ganhou sozinho a bolada toda no primeiro prêmio da loteria. Desta vez pensou diferente sobre a “profecia” que lhe fora dita naquela noite. Inclusive voltou inúmeras vezes à igreja e procurou pelo sujeito por toda a cidade para lhe agradecer e compensá-lo de alguma maneira como gratidão, mas sem sucesso. E nos dias que se sucederam, outras recompensas e prêmios diversos. Ele passou a estar no lugar certo, na hora certa, e assim algumas pessoas passaram a lhe chamar de “Gastão” (uma referência ao personagem de Walt Disney, o pato sortudo sobrinho do Tio Patinhas).

Se essa coisa de simpatia, profecia, destino, sorte, etc., existe realmente, não é possível provar, mas há algo que posso afirmar com a mais absoluta convicção: esse foi o sonho mais surreal que já tive.

Autor:

Miguel Arcangelo Picoli é autor do livro Momentos (contos) e Contos para Cassandra (em homenagem à escritora Cassandra Rios).

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui

Leia mais

Patrocínio