O presidente Lula incumbiu o Ministério da Fazenda de preparar um Projeto de Lei a ser apresentado ao Congresso Nacional para a instituição do “Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões” de gases de efeito estufa (GEE). Diferentemente de outros projetos em tramitação no Congresso, que se restringem a criar as bases para um mercado de carbono que privilegie o livre mercado e as vantagens competitivas brasileiras perante o mundo, no projeto do governo o foco é regular as emissões desses gases por meio do controle do nível de atividade dos diversos setores da economia brasileira. O mercado de carbono, nesse caso, não passa de um detalhe.
Segundo minuta que o Ministério da Fazenda circulou recentemente, o Comitê Interministerial de Mudança do Clima (CIM) alocaria “Cotas de Emissões” aos diversos setores econômicos brasileiros por meio de um “Plano Nacional de Alocação”. Em outras palavras, o poder Executivo, a seu exclusivo critério, iria determinar parâmetros máximos de emissões de gases de efeito estufa para cada setor da economia. Essas cotas seriam decrescentes ao longo do tempo, chegando a zero ao final de determinado período: o “net zero” ou “neutralidade de carbono”.
O primeiro conceito a ser conhecido nessa discussão é o de “emissões líquidas” de gases de efeito estufa. Segundo o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), cinco gases têm poder de absorver e reemitir radiação infravermelha na atmosfera, produzindo o chamado efeito estufa. Entre eles, o dióxido de carbono (CO2), o óxido nitroso (N2O) e o metano (CH4). Como cada gás tem características específicas, em especial poder calorífico e duração na atmosfera, o IPCC os converte em uma unidade universal de medida: o carbono equivalente. Nesse caso, uma tonelada de CO2 representa uma tonelada de CO2e (carbono equivalente), uma tonelada de CH4 representa vinte e uma toneladas de CO2e e assim sucessivamente.
Para apurar as emissões líquidas de um país, de uma empresa ou de um estabelecimento, o procedimento é idêntico a um controle de fluxo de caixa: com uma conta corrente. Uma despesa ou um débito na contabilidade financeira equivale a emissões de GEE em CO2e na contabilidade climática. Já uma receita, a remoções de gases da atmosfera. E por fim há o saldo: o volume de emissões líquidas de CO2e. Para exemplificar: na fabricação de cimento, calcário (CaCO3) é transformado em cal (CaO) com respectiva liberação de dióxido de carbono (CO2) na atmosfera. Portanto, as emissões líquidas de uma fábrica de cimento são praticamente iguais às suas emissões, dado que não há remoção de gases no processo. Já uma fazenda de gado remove carbono da atmosfera pela fotossíntese de suas pastagens e emite gases pelo metabolismo dos animais e de processos de correção do solo. Suas emissões líquidas dependerão do seu nível de produtividade, podendo ser positivas ou negativas.
Na proposta, todo empreendimento ou instalação com emissões líquidas de no mínimo 10.000 toneladas de CO2e por ano seria obrigado a prestar contas a uma “Autoridade Nacional de Segurança Climática”, para parafrasear a Ministra de Clima e Meio Ambiente, Marina Silva. Quem se enquadraria em tal exigibilidade? Depende da regulamentação a ser determinada pelo próprio Governo, mas, a grosso modo, uma empresa de ônibus, uma fábrica de cimento, uma propriedade rural com cinco mil animais, uma empresa com dezenas de milhares de funcionários e assim por diante. Em suma, todos os médios e grandes negócios brasileiros. A prestação de contas seria similar à declaração de imposto de renda: auto declaratória e anual. O declarante teria de contratar os serviços de uma empresa de contabilidade climática para apurar seu resultado líquido de emissões, um mercado formidável para as consultorias. A contabilidade seguiria metodologias e regras estabelecidas pelo IPCC e pela Convenção-Quadro das Nações Unidas para Mudança do Clima (UNFCCC).
O Plano Nacional de Alocação estabeleceria as cotas a ser designadas às diversas indústrias nacionais, bem como o ritmo de diminuição das mesmas até que atinjam zero. Essas cotas seriam então distribuídas ao agente econômico, a determinada razão em consequência da indústria à qual pertença. Se em determinado ano as emissões líquidas apuradas por esse agente forem inferiores à sua cota, então ele teria um saldo de créditos que poderiam ser transformados em títulos mobiliários a ser transacionados direta ou indiretamente com algum outro que estivesse em débito climático, ou seja, cujas emissões líquidas tivessem sido superiores à sua cota naquele exercício. Dessa forma, com a aquisição de créditos que igualassem seus débitos, esse devedor neutralizaria seu saldo climático ao “aposentar” esses títulos perante a autoridade climática. O texto também define sanções àqueles agentes regulados que não cumpriram sua cota, seja pelos seus próprios resultados climáticos ou pela citada neutralização. Nesse caso, o estabelecimento poderia ser interditado e uma multa aplicada no valor de até 5% de sua receita bruta no exercício anterior. Os proventos dessas receitas seriam alocadas pela autoridade climática, entre outras finalidades, a comunidades tradicionais.
Para a compreensão da natureza dos instrumentos popularmente chamados de “Créditos de Carbono”, é necessário apresentar dois outros conceitos estabelecidos na UNFCCC. O primeiro é o de “adicionalidade”, que determina que somente esforços de redução de emissões que não existiriam em ambiente de “business as usual” são passíveis de ser validados como títulos negociáveis. Ou seja, há de se comprovar a inexequibilidade financeira daquele esforço para que o mesmo possa ser financiado por intermédio de registro, validação e venda de Créditos de Carbono. Esforços que são empreendidos por força de lei também não apresentam adicionalidade.
O segundo conceito é a “linha de base”, o ponto de partida para a apuração do Crédito de Carbono. Imagine uma corrida de velocidade de cem metros rasos. O corredor A, que desenvolveu o tênis mais moderno do mundo, percorre o trajeto em dez segundos. Essa será sua linha de base, que dificilmente será superada. Já o corredor B, ao adotar o mesmo tênis, melhora seu tempo de vinte segundos (sua linha de base) para quinze. Embora o corredor A ainda seja cinco segundos mais rápido que o B (10 < 15), ele não poderá validar nenhuma unidade de crédito. Já o corredor B validará cinco unidades (20 -15).
Após um período de transição, quando esse sistema estiver em funcionamento pleno, o setor a ser mais severamente punido é justamente o mais sustentável e competitivo de todos: a produção agropecuária. Como as grandes operações brasileiras saem de linhas de base elevadas e suas reservas legais e Áreas de Preservação Permanentes (APP), que por ser previstas em lei (Código Florestal) não apresentam adicionalidade, esses operadores não poderão validar Créditos de Carbono. Ademais, qual seria o critério a ser adotado pelo governo federal no Plano Nacional de Alocação de cotas de emissões para a produção rural brasileira? Aquilo que ele relata à UNFCCC como “Setor Agropecuário” em seu inventário nacional de GEE, que contempla somente emissões e nenhuma remoção, ou cálculos baseados no ciclo de vida dos produtos (da fazenda ao garfo), metodologia não adotada pelo IPCC?
Por fim, a negociação de créditos dá-se em um circuito fechado de soma zero, já que só haverá possibilidade de eventuais exportações de créditos em meados da próxima década, se houver, a depender da implementação global do Acordo de Paris e seus dispositivos. No agregado nacional, o que se observará é um aumento consistente do custo de vida do brasileiro à medida em que as cotas de emissões sejam reduzidas.
Se é certo que Lula pretende apresentar esse projeto aprovado aos líderes dos países ricos por ocasião da Reunião do G20, em Nova Délhi, em setembro, ou da COP28 de Dubai, em dezembro. Aos brasileiros o legado seria uma economia de planejamento central além de inúmeras dúvidas: qual a garantia de que o governo não venha a destruir um setor econômico com instrumentos de controle climáticos por imperícia ou ideologia? Qual o impacto nos custos da cesta básica, da construção civil, dos transportes, da indústria de base ou na competitividade das exportações brasileiras? Qual a eficácia de tal política se a única real ameaça à trajetória decrescente das emissões líquidas de GEE brasileiras é o desmatamento ilegal, hoje capitaneado por grandes organizações criminosas que se instalaram na Amazônia?
Autor:
Eduardo Lunardelli Novaes é empresário. Foi Secretário de Clima e Relações Internacionais do Ministério do Meio Ambiente entre 2020 e 2021 e é diretor de sustentabilidade da ASSOCON – Associação Nacional da Pecuária de Corte