Toda manhã logo que abria o escritório lá vinha Heitor varrendo o corredor para depois passar pano, no maior capricho. Quando chegava em frente à sala lançava mão de um outro pano sempre sobre o ombro esquerdo, e o esfregava na porta toda. Além de forrar o carpete com pequenos fiapos a porta ficava toda manchada. Assim que se dirigia aos andares inferiores era minha vez de lançar mão de um pano, limpar as manchas e aplicar algum produto que devolvia o brilho à madeira. Também uma vassoura era utilizada no carpete.
No dia seguinte sempre o mesmo ritual, enfatizando que aquela porta era uma beleza. Às outras ele dispensava o mesmo trato, mas não ficavam brilhando. Devia ser a madeira. Nunca lhe disse o segredo, nem nunca achei ruim que aquilo acontecesse. Apenas não queria magoá-lo, pois o fazia com a melhor das intenções e boa vontade, e nem mesmo era sua obrigação. Seu Heitor havia crescido trabalhando desde muito cedo, auxiliando e cuidando de familiares, alguns enfermos, outros idosos. Vida dura, e quando ficou só já tinha certa idade. Conheceu então uma mulher com dois filhos, com quem logo se casou. Poucos dias depois, a terrível surpresa: mãe e filhos há muito eram procurados pela justiça e foram todos presos. Heitor nunca deixou de visitá-los na prisão, levar-lhes o que lhe era possível e fazer-lhes companhia.
Pensando bem, sua vida parecia-se com os andares do prédio onde trabalhava: cheio de portas, todas iguais, todas levavam para cima e novamente para baixo. Um labirinto. Certo dia, já a postos para pegar vassoura e pano fui surpreendido por uma senhora que fazia o serviço do seu Heitor. Passou em frente à sala varrendo e voltou passando pano. Sequer olhou para a porta, terminou o corredor e desceu. Fiquei desapontado. Pela primeira vez em anos não precisaria cumprir minha parte no ritual.
Seu Heitor havia ficado doente e ficaria afastado algum tempo. Achei bom fazer-lhe uma visita, afinal vivia sozinho e talvez pudesse auxiliá-lo nalguma coisa. Passei no mercado, escolhi algumas frutas, biscoitos e outros alimentos. Precisei deixar o carro próximo a viela aonde residia. Uma porção de casinhas simples, todas iguais exceto pelas cores. Atendeu-me logo, convidou-me a entrar e foi logo passar um café no coador de pano.
Disse-me que estava bem, não precisava de nada mas estava encantado com a visita e preocupação, pelas quais me agradeceu. Disse-me que naquele dia, ainda, iria rever seus familiares porque na próxima semana não seria possível e até me perguntou se me importaria se levasse a eles algo de que comprara. Claro que não! Conversamos o de sempre mas comentei que para ele, a vida parecia teimar em fechar as portas. Respondeu-me que por mais portas abertas que alguém possa ter, sempre (e sempre) se vive na expectativa da abertura de uma outra. Concordei.
Seu fiel (e este era seu nome) e inseparável amigo, um cachorro (absolutamente) preto nos acompanhou no gostoso café. Heitor disse que ele guardava sua casa durante o dia, e seu sono durante a noite. Era sua alegria e recompensa aqui na Terra. Despedi-me dele e lhe disse que esperava vê-lo em breve no trabalho. Heitor faleceu alguns dias depois. A esposa conseguiu alugar a casa, aonde Fiel passava o dia todo em frente. Os vizinhos, já acostumados com ele o alimentavam e serviam-lhe água gelada e café coado na hora, como seu dono o habituara. À noite ele ficava em frente ao portão do cemitério.
Autor:
Miguel Arcangelo Picoli é autor do livro Momentos (contos) e Contos para Cassandra (em homenagem à escritora Cassandra Rios).